Lá no Piauí...
Ibaneis atropela estatuto da OAB e enche pé de meia com grileiro
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emEm 25 de agosto de 2016, como principal sócio de um renomado escritório em Brasília, Ibaneis Rocha (MDB) tornou-se um dos advogados de três réus em uma ação movida pelo Ministério Público (MP) do Piauí. Por meio de uma procuração, o fato foi comunicado à Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus (PI) em um papel timbrado do escritório Ibaneis Advocacia e Consultoria, assinado por ele próprio, que também servia para confirmar oficialmente a citação dos réus pela justiça. Assim, o atual candidato à reeleição pelo governo do Distrito Federal pelo MDB assumia a defesa de um grupo acusado de grilar uma porção de terras equivalente ao Rio de Janeiro (RJ) inteiro, mas disperso pelo extremo sul do Piauí – em plena fronteira agrícola do país.
Materiais inéditos obtidos pela Agência Pública mostram que Ibaneis Rocha era o advogado “exclusivamente” habilitado a receber publicações oficiais do caso, como despachos, intimações e afins, contra o grupo até junho de 2021, período que invadiu o mandato de Ibaneis como governador do Distrito Federal. Segundo ex-juízes e professores em Direito, o estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) proíbe a advocacia a governadores com mandato em vigor.
À Pública, Ibaneis Rocha disse que seu escritório “foi contratado para atuar no referido processo no ano de 2016”, mas que “sequer apresentou defesa em nome dos constituintes, sendo substituído por outro escritório, que efetivamente apresentou defesa nos autos”. O governador disse ainda que “desligou-se em março de 2022” do caso, que se “licenciou perante a Ordem dos Advogados do Brasil no final do ano de 2018”, e que, desde então, “não mais pratica qualquer ato privativo de advogado”.
O MP afirma que os réus que outorgaram procuração para Ibaneis e sua firma são responsáveis pela grilagem de mais de 124 mil hectares no extremo sul do estado. O ex-juiz do caso na Vara Agrária do Piauí apontou, em 2018, que o suposto esquema de grilagem já teria movimentado R$ 195 bilhões em negócios.
Entre os então clientes do governador do DF e seu escritório constava o suposto mentor do esquema, o falecido empresário Euclides de Carli – “dono de quase o Piauí inteiro”, segundo a justiça estadual –, tido como um dos maiores grileiros do país. De Carli enfrentou denúncias pelo mesmo tipo de acusações em regiões do Cerrado no Maranhão.
Conforme a justiça do Piauí, os réus então defendidos por Ibaneis e sua firma apenas “deram-se por citados” no processo contra eles, “sem, entretanto, terem apresentado contestação” às acusações do Ministério Público. Já o MP informou que o espólio de Euclides de Carli, constituído após sua morte, ainda “não foi citado em razão do endereço inicialmente informado ser insuficiente para a realização da citação”.
No material obtido pela Pública, sobressai o momento em que o governador do DF teria deixado o caso, em junho de 2021. À época, durante um plantão do Judiciário, um desembargador anulou todas as medidas já tomadas pela Vara Agrária e não comunicou oficialmente sua decisão nem à parte acusadora, o Ministério Público estadual, nem ao juizado responsável pelo processo original, segundo informado pelo MP.
O desembargador de plantão liberou todas as fazendas sob suspeita de fraude, bloqueadas por quase cinco anos a mando da justiça estadual, com base em um pedido de “desbloqueio parcial”, referente a apenas uma das propriedades. Pedido este que veio de um advogado que havia sido preso, anos antes, por suposto envolvimento em outro esquema de grilagem no sul do Piauí.
A liberação de todas as terras bloqueadas havia cinco anos beneficiou os clientes de Ibaneis Rocha e de seu escritório, que, um mês após a decisão, deixou o caso oficialmente – de acordo com o material obtido pela reportagem.
A reviravolta produzida pela decisão do desembargador de plantão tem gerado consequências no sul do Piauí, além de questionamentos sobre a atuação dos órgãos envolvidos no caso.
Em abril passado a Pública já havia noticiado desmatamentos ilegais em áreas ligadas ao caso, uma devastação ocorrida menos de três meses após a liberação das terras na justiça do Piauí.
Em outubro de 2021, organizações sociais que atuam na região flagraram, por satélite, a derrubada de mais de dois mil hectares nativos de Cerrado na fazenda Pedrinhas, uma das fazendas sob suspeita, segundo o MP, em Santa Filomena (PI).
Todas as fazendas envolvidas no suposto esquema se espalham pela grande fronteira da soja no Brasil, no Cerrado do Matopiba, um dos motivos por trás da voraz especulação imobiliária no extremo sul do estado.
Estatuto atropelado
Ibaneis Rocha governa o Distrito Federal desde 1º de janeiro de 2019, período que em parte coincide com seu tempo como advogado de Euclides de Carli e seu grupo perante a justiça do Piauí. O material obtido pela Pública mostra que, no início de julho de 2021, o governador afastou-se oficialmente do caso, com seus sócios assumindo seu lugar. Atualmente, os ex-clientes de Ibaneis têm outro advogado na causa, um profissional sem vínculo com a firma do candidato à reeleição pelo DF.
Sem apresentar nomes envolvidos no processo, a reportagem procurou um grupo de especialistas em Direito para entender a situação do ponto de vista jurídico.
Para ex-juízes e professores das áreas de Direito Cível e Eleitoral, quando um advogado, como Ibaneis Rocha, toma posse como chefe de governo, como o do Distrito Federal, ele deveria se desligar ou se licenciar de processos em trâmite na justiça.
O impedimento teria base nos artigos 28 e 30 do estatuto da OAB, que definem incompatibilidades e impedimentos para o exercício da profissão no país. Um dos artigos diz: a “advocacia é incompatível, mesmo em causa própria”, para quem ocupar a posição de “chefe do Poder Executivo” – seja distrital, estadual ou federal.
Mas segundo o ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Flávio Luiz Yarshell, não há obrigação legal para que advogados – quando eleitos, de modo geral – declarem sua relação com processos em curso.
“Caso existam incompatibilidades com o exercício do mandato ou cargo para o qual se elegeu, que impeçam um advogado eleito de tomar posse, espera-se que ele ao menos comunique a seção regional da OAB, por dever ético da profissão”, afirmou o professor da USP.
Ouvido sob a condição de anonimato, um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também diz que não é permitido a governadores que atuem como advogados durante seus mandatos.
Terra à vista no Matopiba
Nos últimos 15 anos, área de cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia foi alvo de grandes aquisições de terras por investimentos estrangeiros; em algumas regiões o preço do hectare teve índices superiores a 270% de valorização real.
“É comum vermos parlamentares que atuam como advogados enquanto exercem seus mandatos, mas esta é uma condição proibitiva para aqueles com cargos no Executivo – seja no Distrito Federal ou na presidência da República”, afirmou o ex-ministro.
Os especialistas ouvidos pela reportagem indicam que há uma espécie de vazio legal sobre a prática. Não existe, segundo eles, uma definição precisa quanto aos órgãos responsáveis por apurar este tipo de ocorrência e punir eventuais desvios ou incompatibilidades.
Para o ex-diretor e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Mamede Said Filho, há diferentes instâncias com poder de atuação para investigar casos deste tipo.
“Por se tratar de caso envolvendo o Poder Executivo, cabe fiscalização do Ministério Público do respectivo estado onde este conflito porventura ocorra. Também há espaço para que a respectiva Mesa do Poder Legislativo, como instância política, apure denúncias do tipo”, diz o professor da UnB.
A Pública procurou a OAB do Distrito Federal, à qual Ibaneis Rocha é filiado, para saber se ele comunicou sua ligação com causas em trâmite na justiça antes de assumir o governo do DF. Além disso, perguntou também qual o rito em casos desta natureza por parte da OAB, e se haveria incompatibilidades para o exercício da advocacia por parte do governador.
“Não verificamos comunicações de parlamentares sobre incompatibilidade de exercício profissional; nem recebemos, pelo Tribunal de Ética e Disciplina (TED), denúncias sobre desrespeito ao Estatuto da Advocacia (artigos 28 e 30)”, disse a instituição à reportagem.