Aos 81 anos, Maria do Carmo Manfredini conserva memória privilegiada, principalmente quando o assunto é a história de Renato Russo, que completaria 58 anos nesta terça-feira (27). Ao falar do filho, que se transformou em figura icônica do rock brasileiro, não foge de questões polêmicas, como a homossexualidade e a dependência de drogas do ídolo. Mas, como mãe, prefere se ater à relação dele com a família – principalmente no período que antecedeu à fama e ao sucesso à frente da Legião Urbana.
Uma das lembranças que ainda leva Dona Carminha – como ficou conhecida – a se emocionar é de quando Renato, já em Brasília, foi diagnosticado como portador de epifisiólise, doença óssea que o levou a ser submetido a uma cirurgia para a implantação de três pinos de platina na bacia. “O Júnior sofreu muito com a enfermidade e ficou seis meses de cama, praticamente sem movimentos. Naquela época, a única coisa que aliava um pouco as dores era a audição de discos, especialmente dos Beatles”.
Ela conta que Renato, nascido no Rio de Janeiro, gostou de Brasília desde a chegada. “Ao saber que viríamos morar aqui, procurou se informar bastante sobre a cidade e fez comentários elogiosos aos espaços, à arquitetura quando, em 6 de março de 1973, entramos no Eixão, indo para a 303 Sul, onde voltei a morar no ano passado”.
Roqueiro – Sem esquecer detalhes, relata: “Foi aqui, em nosso apartamento que surgiu o roqueiro. No quarto dele, além da cama de solteiro e de um guarda-roupa, havia uma estante, utilizada para guardar discos, fitas-cassetes, filmes, livros e os cadernos em que escrevia letras de música; e começou a projetar a imaginária 42nd Street Band. Ah, sim, numa das paredes do quarto, ele fazia colagem com fotos de ídolos da música e do cinema, capas de revistas e matérias do jornal inglês Melody maker, que comprava numa banca no aeroporto”.
Outra recordação de Dona Carminha é a do filho ouvindo no rádio programas da BBC de Londres, em especial os musicais. “O Júnior não era muito exigente em relação à comida. Preferia o trivial, arroz, feijão, bife e batata, mas também, como descendente de italiano, gostava de massa. Nos fins de semana, costumávamos ir ao restaurante La Gioconda, na 102 Sul e ao Nipon, na 403 Sul, que existem até hoje”.
Aos 18 anos, Renato passou a dar aulas na Cultura Inglesa e a frequentar a sala de cinema que existia naquela escola, administrada por José da Mata. Mais ou menos no mesmo período, ele apresentava um programa na Planalto FM (atual Clube FM, dos Diários Associados). “Inicialmente era um programa voltado para cantores de jazz; e depois só com músicas dos Beatles, dos quais falava com propriedade, pois tinha bastante conhecimento”, revela a mãe.
Para ela, o que ocorreu após a criação do Aborto Elétrico, banda seminal do Rock Brasília, mudou a rotina do filho. “Naquela fase punk, ele começou a sair mais de casa, indo para a Colina (conjunto de blocos residenciais na Universidade de Brasília, habitados por famílias de professores), onde se encontrava com sua turma, e para outros locais. O nosso apartamento passou a ser muito frequentado pelos músicos da banda. Eles chegavam, às vezes de madrugada, apertavam a campainha, eu abria a porta e, sem nenhuma cerimônia, no máximo diziam ‘oi’. Isso quando diziam”.
Segundo Dona Carminha, quando o Aborto começou a fazer shows e, mesmo depois, na fase do Trovador Solitário, Renato tinha o pai ao seu lado. “O Renato, pacientemente e até com um certo orgulho, enchia de instrumentos e equipamentos de som a Rural Willys verde e levava o Júnior para os locais dos shows. A relação entre eles era muito boa”.
Mesmo a mudança para o Rio de Janeiro, com o advento da Legião Urbana, e o consequente afastamento físico de Renato Russo da família não impediram que se mantivessem unidos. “A partir do momento em que a banda lançou o primeiro disco, se acentuaram as solicitações à gravadora (Odeon), por parte de emissoras de televisão, para que a Legião participasse dos seus programas. O Júnior não gostava muito não, mais ia. Antes ligava para nós, para nos manter informados”.
“1980 – O ano em que minha vida mudou” – “Numa tarde despretensiosa, voltando pra casa a pé depois da escola, vi o Renato pela primeira vez. Eu tinha 16 anos. O Aborto Elétrico estava tocando numa calçada entre a 110 e a 111 Sul para uma plateia de umas 10 pessoas. Eu já ouvia rock com um fervor quase religioso há alguns anos e qualquer música com alguma distorção me chamava a atenção.
Parei pra ver quem eram aqueles malucos com coleiras, alfinetes, calças rasgadas e cabelos espetados produzindo um som que tava mais pra cacofonia do que pra música. No meio do caos e do barulho, uma coisa se sobressaia – espantosamente – a voz e as palavras que saiam da boca do vocalista. Eu nunca tinha ouvido nada parecido. Era ao mesmo tempo visceral, urgente, político e poético. Hoje, em retrospecto, percebo que naquela tarde minha vida mudou de rumo.
É difícil saber exatamente a dimensão do Renato na minha vida. Sei que eu nunca teria sido músico se não o tivesse encontrado na 111. Sei que nunca conheci alguém tão talentoso. Acredito que ele continua sendo subestimado na medida em que, na minha opinião, ele ainda não é devidamente reconhecido como um dos maiores compositores da história da música popular. Acho que ele está em pé de igualdade com vários nomes sagrados da canção brasileira. Tenho certeza de que ainda, durante muitos anos, no futuro, sua obra será relevante e influente.
Um dos aspectos mais interessantes da vida de artistas que têm uma dimensão quase sobre-humana e justamente saber como eles eram no dia a dia, ou melhor ainda, como foram suas vidas antes do reconhecimento. Eu tive o privilégio de conviver com o Renato antes do sucesso, antes da Legião Urbana. Estávamos sempre em bando, e ele era um de nós, aparentemente só mais um, mas, aos meus olhos era nosso líder.
Éramos todos adolescentes e vivíamos juntos, numa turma de dezenas de garotos e garotas que achavam que iam mudar o país. Éramos simultaneamente ingênuos e arrogantes, audaciosos e impotentes. Tudo que fazíamos nos parecia subversivo. Nos nossos frequentes acampamentos, o cara tocava violão e cantava pra gente. Rolavam discussões sem fim em que política estava sempre tão presente quanto música, cinema e literatura. Pequena curiosidade: quando o Renato fala comigo pela primeira vez, é pra perguntar o que eu gostava de ler.
Frequentar sua casa era como ir à Meca, um momento sublime. As paredes de seu quarto eram cobertas de recortes de matérias de jornais como NME e Melody Maker. Discos e livros estavam empilhados em todos os cantos. Sentávamos e passávamos a tarde conversando sobre música e cinema.
De tanto ler biografias de músicos e atores, ele sabia detalhes da vida e da obra de todos os nossos heróis. Como tinha sido a filmagem de Cidadão Kane; a gravação de Sgt. Pepper’s; a composição de alguma música Sex Pistols. Ele sabia dos pormenores, do dia a dia, das brigas, da inspiração, do processo inteiro. De todas as memórias que guardo do Renato, essas são as melhores e mais divertidas. Ele estava em casa, estava relaxado, era culto, generoso e engraçado.
Hoje, passado tanto tempo, a tendência é de que as pessoas se concentrem na sua obra. De fato, ela merece essa atenção. Mas, por trás de toda essa música e rara inspiração, havia um cara em carne e osso como eu e você; com defeitos e virtudes. As virtudes se sobressaiam de longe e são elas que fazem dele um sujeito singular, um artista único – o maior e melhor roqueiro da história do Brasil.” – Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial
“Uma boa lembrança” – “Quando me perguntam sobre o meu irmão Renato, muitas vezes cito o seu tom professoral, de como ele gostava de ensinar os outros e passar, de forma generosa, os seus conhecimentos sobre arte e cultura em geral. Quando gostava de alguém, presenteava, e 99,9% desses regalos eram de cunho cultural: livros, CDs, LPs e fitas cassetes que ele mesmo gravava.
Um pouco antes de sua morte, em 1996, tivemos uma longa, boa e animada conversa. Ele já estava cansado da banda Legião Urbana e de todas as pressões da gravadora EMI-Odeon, principalmente com os prazos dados para que ele escrevesse as letras. Começou a conversa dizendo que queria largar tudo e voltar a lecionar.
Em vez de desencorajá-lo, pois ele estava no auge da carreira, adorei a ideia e fiquei muito feliz, e sugeri que ele poderia ter uma ou duas turmas pequenas e dar tanto aula de língua inglesa, quanto de cultura geral, em português e inglês. Ele dominava o inglês como um nativo e com toda a sua bagagem de arte, música, literatura, filosofia e cinema, daria, com segurança, aulas dinâmicas, prazerosas e até divertidas. Seus olhos brilhavam. Ficamos tendo ideias e uma delas foi a de que ele voltasse para Brasília, o que ele achou bem interessante.
Recomeçar do zero? Não exatamente, porque foi aqui, que antes de ser músico e se tornar um ícone do rock nacional, teve o seu primeiro emprego como professor na Cultura Inglesa. Nesse dia, vi o meu irmão Júnior empolgado novamente. Pena que não deu tempo. Mas, para mim, com tudo o que me ensinou, e ainda me ensina, ele recomeça sempre.” – Carmem Teresa, irmã de Renato Russo