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Síndrome de Stephen

Ideologia mata amor e afasta os concunhados

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez/Foto Divulgação

Eram vizinhos, mas mal se falavam, uma coisa bastante comum nas grandes cidades. Já haviam subido e descido juntos no elevador várias vezes, esbarrado no supermercado da esquina, tomado café na padaria em frente. Nenhuma palavra. Até que, por essas coincidências esdrúxulas, inimagináveis, começaram a namorar, quase ao mesmo tempo, duas irmãs. Quero deixar claro que cada um passou a namorar uma das irmãs. Creio que ficou óbvio agora.

Por causa dessa situação inusitada, começaram a frequentar alguns ambientes onde já não podiam mais se ignorar. Trocaram algumas singelas palavras durante almoços na casa das namoradas, em encontros nos barzinhos das redondezas. Mas não se bicavam! Um era nitidamente eleitor da esquerda; o outro, não sabia o que era, pois votava sempre na direita. Mas iam se aturando, até que, na casa de que seria dos futuros sogros, decidiram assistir ao filme “Django livre”.

Lá estavam os dois com as respectivas namoradas, todos acomodados no imenso sofá em frente à telona, o rapaz da esquerda e a sua namorada, à esquerda; o outro casal, à direita. Na mesinha de centro, uma garrafa de dois litros de guaraná, uma bacia enorme de pipoca. O interruptor foi empurrado para baixo, o que fez com que a lâmpada da sala se apagasse. Apenas a luz da televisão. Quase um cinema!

As cenas da obra-prima galopavam a passos sangrentos, típicos do Tarantino. Até que surgiu o momento em que apareceram na tela Samuel L. Jackson, interpretando Stephen, um escravo do poderoso proprietário de terras Calvin Candle, vivido por Leonardo Di Caprio. Outros donos de fazenda com seus homens escravizados já haviam sido vistos até então, mas algo chamou a atenção do rapaz da esquerda: Stephen defendia os interesses de Calvin, em detrimento dos outros escravos e dele mesmo. Ele agia como se não fosse escravo, não se enxergava como se fosse um.

– Esse Stephen representa boa parcela do povo, que não se vê como povo e vota no patrão. É o típico pobre de direita. Ele é o policial, que não se vê como povo e que defende os interesses dos que estão no poder. São os capachos que pensam que são os sapatos, disse o rapaz sentado à esquerda.

– Você é um comunista!, retrucou o rapaz da direita.

Essas palavras do eleitor da direita levaram a uma gargalhada do rapaz da esquerda, que acabou deixando o rapaz da direita ainda mais nervoso. Ele não conseguiu raciocinar, fechou a cara, o rosto voltado para o chão, os punhos cerrados, sem coragem.

O filme nem chegou ao fim. O clima ficou ruim, mas não houve violência, pois o rapaz da direita estava sozinho. Depois de alguns meses, as irmãs e os rapazes deixaram de namorar. Eles ainda são vizinhos. Não se falam mais. De vez em quando se encontram no elevador, se esbarram no supermercado e tomam café na mesma padaria, que fica em frente ao edifício onde moram.

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