Mãe da maioria das enfermidades do século XXI, a ignorância mudou de conceito no Brasil: passou de doença tratável para endemia generalizada envolvendo os poderosos e aqueles que lambem as botas estreladas, os coturnos de saltos altos e afins. Didaticamente, o substantivo ignorância define o indivíduo que deliberadamente ignora, desconhece ou desconsidera informações ou fatos importantes. No popular, é o estado de quem não está nem aí para o que ocorre ao seu redor, preferindo interpretar os acontecimentos ou seguir as interpretações interessantes para seu núcleo familiar, social ou político.
Como vivemos uma quadra de maluquice interessada, isto é, o conflito disfarçado entre o conhecimento e a ignorância, é bom que se diga que o mal que está no mundo sempre vem do apedeutismo comprado nas farmácias populares. É o sinônimo de perder a consciência e a compreensão por exclusiva conveniência. Mesmo sem o apoio do disse onário, diria que todo esse blá blá blá wikipediano pode ser definido pela palavra “patriota”. Esse é o tipo que adora ser taxado de inábil ou inculto para tentar dominar os mais ingênuos. Eles atingem o ápice da malandragem quando o assunto é política.
É aí que entram em cena os ensinamentos de Olavo de Carvalho, o ensaísta do mal, para quem ignorar a própria ignorância é a melhor sinalização de conhecimento. Em outras palavras, as atitudes de seus pupilos devem ser únicas e coletivas: considerar apenas a própria opinião, jamais ter disposição para ouvir antagônicos, nunca modificar suas teorias e conceitos, ainda que estejam errados, e morrer sem demonstrar preocupação com o sentimento dos outros. Qualquer semelhança com os “patriotas” não é mera coincidência. Como para quem sabe ler um pingo é letra, desde 2018 o estulto com diploma, ou seja, o estúpido por definição, é o objetivo a ser alcançado.
Contra a frieza dos ignorantes funcionais politicamente, cuja estratégia é negar e desconstruir o óbvio com a naturalidade dos idiotas, são indispensáveis as expertises da firmeza, da segurança e da assertividade. Toda essa funhanhada verborrágica sobre aqueles que se acham superiores serviu de mote para que eu chegasse aonde queria. Dia desses, fui levado a um supermercado sabidamente de propriedade de um dos camaradas acima do bem e do mal por conta de uma promoção de picanha bovina, iguaria que voltou à mesa do consumidor comum desde meados do atual governo.
Como a maioria do bairro teve a mesma ideia, o gerente, certamente cumprindo ordens, anunciou que cada cliente poderia levar somente uma peça. Tinha pego três e, já no caixa, diante do pedido da gerência, devolvi duas e passei. Atrás de mim, uma dessas senhoras metidas a madame tinha duas no carrinho. Tentando aplicar o golpe da ignorância, ela pusilanimente insistiu, mas foi barrada pelo operador. A uma certa distância, ouvi a “patriota” resmungar com o rapaz que aquilo só podia ser coisa do “nove dedos”, o presidente que eles odeiam somente porque tirou o Capetão de cena. A encenação e o estremelique, sinônimo de faniquito, não deram resultado.
A dondoca saiu, colocou suas compras no carro estacionado defronte à loja e retornou. Pegou mais uma picanha e, com ares de idiota elitizada, questionou o operador com os olhos. O rapaz entendeu, mas se calou. Eu não. Me dirigi a ela e, com a serenidade de um cavalo chucro, perguntei se ela fazia parte daquele coletivo de democratas que acha o Brasil de Luiz Inácio uma merda apenas porque ele impediu que seu grupelho tomasse conta e transformasse a suposta titica em um amontoado de bosta. Se vencessem, seríamos hoje o esterco do mundo. Ganhei no grito, mas não consegui evitar os xingamentos. Meno male. Virei um comunista safado, mas, com a alma lavada, fiz meu comercial antibolsonarista. Os aplausos foram a prova de que não estou só.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978