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Maré da Fé

Iemanjá ganha força em meio às águas e faz o Nordeste mais colorido

Publicado

Autor/Imagem:
Acssa Maria - Foto Hadassa Teotônio

A Semana Santa no subúrbio, e o cheiro de peixe fresco se mistura ao incenso no ar do Nordeste. As ruas se enfeitam com fitas brancas e azuis, e mesmo entre as procissões católicas, um tambor distante lembra que outras forças também caminham entre nós. Dona Célia, com seus colares de contas e o branco impecável do axé, preparava o balaio de oferendas. “Hoje vai pra Iemanjá, mas não é só pra ela não. Vai por todos que rezam, de um jeito ou de outro.”

Para a sexta-feira da Paixão, enquanto o povo se prepara para ia à igreja reviver a dor de Cristo, Dona Célia irá ao mar. “Jesus sofreu, sim, mas também foi filho das águas. Sofrimento é água que corre, e quem entende de mar é ela.” Levava flores brancas, velas azuis e palavras que misturavam salmos e pontos de umbanda. Misturava porque na fé dela, não existia divisão: era tudo reza, tudo pedido, tudo amor.

Era a maré de fé que se formava naquela orla nordestina como uma onda silenciosa, feita de ladainhas e cânticos, de cruzes e búzios, de lágrimas e esperanças. Uma maré que não separa, mas une. Subia no coração de quem acreditava que o sagrado não tem nome fixo, que ora é Deus, ora é Olorum, ora é o mar que embala e leva as dores. Nessa maré, Cristo caminhava sobre as águas, mas Iemanjá era quem o acolhia quando ele cansava.

A fé vem com a maré cheia, empurrando as dúvidas para longe, levando os pedidos aos pés da Rainha do Mar. E quando a maré baixa, deixa na areia a certeza de que tudo que é puro se encontra: o branco das vestes, o azul das contas, o silêncio das orações. É uma fé líquida, que não se deixa prender em dogmas. Uma fé que se espalha, invade, renova.

A vizinha católica estranhava, mas não questionava. Sabia que quando o filho ficou doente, foi no congá da Dona Célia que buscou esperança. E se curou. “Milagre de Deus”, dizia. “Ou de Iemanjá”, respondia a mãe de santo, sorrindo.

No sábado de aleluia, enquanto muitos queimam o Judas de papel, Dona Célia lança flores ao mar, pedindo por um renascimento que fosse mais do que tradição. Uma ressurreição de respeito às águas, aos santos, aos orixás e às histórias que o Brasil teima em esquecer.

Porque ali, naquela esquina entre o sincretismo e a fé, a Semana Santa também é de Iemanjá. E ela, com sua calma de maré cheia, acolhe todos – inclusive Jesus – no colo das águas.

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