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O velho e o devaneio

Imbatível na pelada, Dori escapa da dor da picada

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Acabei de voltar da rua. Fui comprar meio quilo de cebola, um de tomate, além de algumas batatas. Demorei mais do que de costume, mas Arlete, minha esposa, parece que nem percebeu. Mesmo assim, puxei conversa, enquanto ela, sentada no sofá, mexia no jornal da semana anterior, talvez em busca de algo para abstraí-la dessa vida tão tediosa.

— Vi uns meninos jogando bola no campinho do final da rua.

Arlete nem se deu ao trabalho de desviar os olhos daquelas páginas usadas. Ainda esperei por mais um instante, até que rumei para a varanda, onde me deitei na rede. Ouvi o ranger do tecido esticar com o meu peso, que, não tem como esconder, fez o ponteiro da balança da farmácia da esquina trabalhar um pouco mais nos últimos meses.

Meu pensamento voltou para aqueles garotos batendo uma pelada. Isso me remeteu há quase 60 anos, quando era eu que corria atrás da bola. Jogava muito! Era o craque da minha rua! O problema, hoje percebo isso com maior clareza, é que no meu bairro havia um monte de outras ruas, cada uma com o seu craque. Sem contar que a cidade já possuía dezenas de bairros, todos com tantas ou mais ruas do que o meu.

Tudo bem que o meu senso crítico, ao longo dos anos, se tornou cada vez mais presente. Todavia, hoje não estou a fim de qualquer olhar de descrédito em relação aos meus dribles inimagináveis. Fui o maioral da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do país inteiro e, obviamente, do mundo todo, incluindo a Austrália, que, para aquele grupo de terraplanista, não existe. Que assim seja, pois necessito de tal momento de mentira. Aliás, mentira é uma palavra muito pesada. Ilusão. Sim, ilusão!

Pois lá estava eu, aos 10, driblando todos os marcadores implacáveis. Certamente, tiveram pesadelos na noite anterior, pois sabiam que iriam tentar o impossível, ou seja, marcar o imarcável. Sim! Eis que, velho que hoje sou, me imagino Garrincha nos meus tempos de menino. Que seja! Meus pensamentos são meus e pronto e acabou! Ademais, estou sozinho neste momento, até o som da rede se esticando já se foi. Silêncio lá fora, gritaria aqui dentro da minha cachola. Miragem sem fim.

Uma abelha! Uma mísera abelha me transporta de volta à realidade. Não sou alérgico à picada desse inseto. Entretanto, minha sensibilidade à dor me faz um dos seres mais covardes da face da Terra. Por que fui deixar a janela aberta, se hoje está frio?

A danada sobrevoa em círculos minha cabeça, até que decide pousar bem na minha testa. Fico paralisado, tamanho o medo que me domina. Meus olhos, de tão arregalados, quase são catapultados, talvez por não quererem ver o que vai acontecer. Plaft!!!

— Dorival, o almoço está pronto – Arlete, que acabara de matar a abelha, me intima, enquanto sacode a arma do crime: o jornal.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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