“(…) eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.” Clarice Lispector
Comprei “Um sopro de vida (Pulsações)” logo que foi lançado, no final da década de 1970. Já tinha estudado Clarice Lispector na escola e lido alguns contos… Mas aquele título tinha a ver comigo. Na época já vivia de sopros. Quanto mais lia, mais me espantava… Alguém que cria uma personagem para ser o seu alter ego, era/sou eu e minhas intermináveis conversas comigo mesma.
Então o livro foi me absorvendo 一 e não o contrário. Lia na ordem, lia ao acaso, passava dias num único parágrafo. Meu livro de estimação… Citava seus pensamentos em trechos de conversas casuais, de maneira disfarçada… Queria ver se os olhos do outro ou outra, brilhavam também ao ouvirem aquelas coisas. Às vezes sim, em outras enchiam-se de dúvida. Eu sorria internamente. Que poder enorme a Lispector me emprestava!
Em 1992, distraída, emprestei o danado, que já estava surrado, mas íntegro. Só o recuperei em 1997, num chá de panela (frivolidade que detesto até hoje, mas fui pela causa 一 a do livro, não a da noiva). Era a chance que eu tinha de entrar na casa da usurpadora da literatura alheia e observar sua estante.
Que alegria, lá estava ele. Apesar de muito mal tratado, era o meu livro, especial em tudo. Queria de volta. Entre um brigadeiro e outro, a noiva já quase nua por errar os conteúdos nas caixas com os brindes que ajudariam a montar seu castelo de princesa (ou de areia?)… Mirei na estante e na dona da casa, sem me importar com o contexto, roguei pela devolução:
一 Tem certeza que ainda quer esse livro de volta?
Abracei-o com força, junto ao peito, sobre o coração, virei as costas e sai, mais feliz que pinto no lixo, sem responder o óbvio.
Em 2017 o perdi de vez. Foi vandalizado por moleques que invadiram a minha casa e destruíram minha biblioteca, aumentando, significativamente, a lista das coisas que perdi naquele ano, incluindo a concentração necessária à leitura.
2024 e um novo Sopro de Vida chega em minhas mãos, literalmente, num formato sem o cheiro, sem o toque, presente no objeto que se transformou parte de nós: o celular.
Que coisa boa! A emoção é a mesma! A estima também. Já estou espalhando trechos dele por aí, com maior amplitude no alcance.
Ah, Clarice Lispector… Quanta inspiração… Perdoe-nos por não lhe permitir o merecido descanso, mas foi você que se fez imortal.