Partida incomum
Imprevisibilidade da morte enterra sonho de uma promissora professora
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emCompareci ao funeral de uma jovem de 23 anos, prima de duas queridas amigas, ex-alunas e colegas com quem também tenho ligações na advocacia. Não conhecia a moça, embora já tivesse ouvido falar sobre ela, de como era entusiasmada sobre a vida. Jornalista de formação, acabara de ser aprovada para um concorrido curso de mestrado, sonhava tornar-se professora.
A imprevisibilidade da morte, no entanto, interrompeu o seu sonho, que era também o de toda a sua família. A indesejada das gentes colheu-a de improviso, na flor da idade, quando diversos dramas da existência humana ainda não foram sequer experimentados.
Quando cheguei, a mãe da jovem, que tinha aquela única filha, fazia um discurso emocionado à beira do caixão, seguida de tocante oração conduzida pela avó materna, de fé espírita.
Fiquei meditando sobre o sentido de uma vida ceifada ainda no seu alvorecer, quando tantas coisas boas estavam prestes a ocorrer para aquela menina.
Eu, acostumado às agruras da existência, preocupei-me sobre o que será o “depois” para os pais da jovem extinta, quando voltarem para casa e lidarem com o vazio. Ao término dos cerimoniais, lacra-se o esquife, vão-se as coroas de flores, os amigos e parentes retornam às suas casas e esse vazio impera.
Sei bem como é isso. Perder, na plenitude do amor, a alguém de quem o perfume ainda se sente no ambiente, a toalha ainda se encontra no cabide do banheiro e o pijama, dobrado sob o travesseiro, está pronto para ser usado. E, no entanto, aquela pessoa nunca mais tornará ao leito, nunca mais regressará ao ninho seguro de sua casa. Será deixada distante de nossa convivência e restarão apenas o amor e as memórias.
Cumprimentei, sem jeito, a outros parentes da moça falecida, aos quais conheci naquele momento triste. Estavam desolados, como em choque ainda, mas nos olhos deles vi a semente de uma resignação duradoura, pois, primeiro, professam uma fé genuína no criador da vida e numa existência que continua ainda que o corpo cesse de existir e todos os seus sistemas se interrompam e desfaçam na desagregação das moléculas. Segundo, porque tinham uns aos outros, e ali recebiam o carinho de, sem exagero, centenas de pessoas, a maioria de jovens, que acorreram às exéquias da amiga.
Foi-se deles a filha adorada, a neta inesquecível, a sobrinha próxima, a prima querida, a amiga sincera e leal. De mim era uma quase completa desconhecida, mas como me tocou aquela cena e trouxe ao meu coração sentimentos que, a muito custo, às vezes prefiro que sejam deixados adormecidos na minha alma.
Era, sem dúvida, uma pessoa boníssima, pois, do contrário, não haveria deixado atrás de si aquele rastro de amor testificado pelo grande número de seres enlutados que compareciam à despedida, choravam, oravam e entoavam canções. Era, soube no velório, ligada a instituições religiosas, praticava regularmente a caridade aos menos favorecidos e em condição de rua, além de fanática torcedora do Fluminense.
Talvez não haja levado da vida nenhum amargor, nenhuma grande dor ou desilusão, pois ainda se abria para as grandes experiências e para o mundo.
Não pude deixar de imaginar: fosse minha vida a se encerrar, será que o acontecimento iria mobilizar tantas pessoas? Reuniria o meu cortejo fúnebre um número tão expressivo de criaturas irmanadas numa corrente de solidariedade e dor, ainda que expressassem gratidão pela vida que ali foram celebrar?
Tendo o cortejo se dispersado, fiquei ainda ali alguns minutos, pensativo, contemplando o cemitério que depois deixei, indo em direção às obrigações que ainda me aguardavam no dia triste. Enquanto isso, via uma réstia de luz que se mostrava entre as nuvens de um céu espessamente nublado. A tarde findava. Os automóveis passavam depressa, as pessoas seguiam seus caminhos. A vida no entorno palpitava e, insolente, seguia adiante, sem o menor conhecimento das cenas dramáticas a que eu assistira havia pouco tempo.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com