Os amigos não acreditavam: quando menina, nos anos 1980, Ingrid Guimarães ainda vivia em Goiânia e lá assistiu 128 vezes ao filme Annie. “Eu contei: 128. Sabia todos os diálogos de cor, as canções, as cenas”, conta ela, envolvida com o longa inspirado no musical do mesmo nome, sobre a órfã que, em 1933, durante a Depressão americana, espera reencontrar os pais, enquanto vive em um orfanato comandado por uma megera. Ingrid não sossegava. “O sonho daquela menina me fascinava – eu recriava cenas do filme na escola e pedia para meus pais, quando viajavam para o exterior, trazerem qualquer coisa que lembrasse a Annie.”
Ciente do fascínio da atriz por esse musical, seu colega Tiago Abravanel não pensou duas vezes ao sugerir seu nome aos produtores Carlos Antonio Cavalcanti e Cleto Baccic, do Atelier de Cultura, quando eles compraram os direitos da montagem para o Brasil. O nome de Ingrid também foi referendado por Miguel Falabella, integrado ao projeto. Mas será que ela aceitaria?, eles se perguntavam. Afinal, Ingrid é a rainha do cinema brasileiro (quatro de suas comédias estão entre os filmes mais vistos no País, entre 2000 e 2017) e destaque na TV, além de exibir uma sólida carreira teatral. “Eu espera que me ligassem, pois seria a realização de um sonho, mesmo que eu nunca tenha feito um musical”, contou.
Ingrid conversou com o Estado na semana passada, no dia em que conheceu o elenco. Às vezes, interrompia a conversa quando ouvia alguma canção sendo ensaiada. Cantarolava baixinho. “Não estou acreditando”, ela se desculpava, retomando o papo. Mas, quando um dos hits do musical, Tomorrow, começou a ser entoado, Ingrid paralisou. Nenhum músculo se mexia – apenas uma lágrima escorreu discretamente. “É realmente um sonho, talvez o maior deles, que vou realizar.”
Ao lado de Falabella, Ingrid lidera um elenco formado por ilustres nomes do musical brasileiro, como Sara Sarres e o próprio Baccic, além de 21 meninas, selecionadas entre 3.500 inscritas de todas as regiões brasileiras. O musical estreia no dia 30 de agosto, no Teatro Santander, com uma esmerada produção – o cenário, por exemplo, terá a assinatura de Matt Kinley, responsável pelo belo set de O Homem de La Mancha (2014), e o desenho de luz do também britânico Mike Robertson. “A inspiração são os arcos das pontes que mantêm o metrô nas alturas”, conta Cavalcanti.
O musical é baseado na HQ Little Orphan Annie (Annie, a Pequena Órfã), de Harold Gray (1894-1968), considerado o primeiro cartunista americano a usar os quadrinhos para expressar uma filosofia política – publicada em jornais nos anos 1930, a tira logo evoluiu do melodrama para meditações filosóficas. E a versão musicada segue pelo mesmo caminho: com música de Charles Strouse e letras de Martin Charnin, Annie estreou na Broadway em 1977 trazendo leves referências à turbulenta presidência de Richard Nixon que, em 1974, foi obrigado a renunciar pelo escândalo Watergate.
A peça acompanha Annie, menina de 11 anos que vive em um orfanato comandado pela tresloucada senhora Hannigan (Ingrid). Depois de tentar fugir para encontrar seus pais, que ela acredita estarem vivos, e adotar o cachorro Sandy, ela é trazida de volta e acaba escolhida para passar o Natal na mansão do milionário Oliver Warbucks (Falabella). “Ele representa o capitalista voraz: seu orgulho é transformar dinheiro em mais dinheiro”, comenta Falabella, que também dirige a montagem (cujo orçamento previsto é de R$ 14,5 milhões) e assina a versão em português das canções. “As letras são poéticas e as melodias, belíssimas.”
A novidade, para Falabella, foi não dispor da tradicional liberdade para criar – os detentores dos direitos originais não permitiram cortes no texto (continuam, portanto, as referências ao longínquo presidente Franklin Roosevelt) tampouco adaptações (os nomes mantêm sua grafia em inglês – mesmo Pepper, que poderia se transformar em Pimentinha). Com isso, Falabella não conseguiu transformar Annie em uma menina de rua, nem contar com o talento do muralista Eduardo Kobra, cujo trabalho colorido participaria na confecção dos cenários, o que reforçaria a relação das pessoas com as cidades. “Mas ser domado também é legal”, diverte-se ele, feliz com a presença de Ingrid.
Na sessão de fotos ele abraçou a amiga e a dupla mostrou por que domina o humor. “Deixe a gente bonita porque engraçados já somos”, disparou Ingrid que, enlaçada em Falabella, brincou com o privilégio: “Chora, Marisa Orth; chora, Claudia Raia!”. Sem parar de rir, ele comparou a agitação da amiga à de uma “macaca enjaulada”.
Ingrid, de fato, transbordava felicidade. Ao descobrirem sua presença no primeiro ensaio, as 21 meninas do elenco gritaram, extasiadas, antes de lhe oferecerem um mega-abraço – uma euforia só comparada à recepção, momentos antes, a Scott e Lisa, os dois cães da raça Podengo Português que vão se revezar no papel do cão Sandy. Ingrid beijou suas coleguinhas de elenco, cujos nomes só serão revelados em agosto, quando for exibido o último dos 25 episódios de uma websérie sobre o processo de seleção que envolveu 3.500 candidatas.
“Minha vilã será adorável”, promete Ingrid, ainda surpresa com a grandiosidade de um musical. “Nunca fiz uma peça em que o cenário roda”, diverte-se ela, com a mesma graça com que viveu no cinema a dona de um sex shop em De Pernas Pro Ar. “Vou do vibrador à menina órfã”, continua, provocando gargalhadas. E a segurança para estrear no musical veio com um comentário típico de Falabella: “Em peça com crianças e cachorro, ninguém vai olhar pra gente”.