Eu versus eles
Inimigo coletivo quer aparecer à custa do homem do nosso tempo
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emTão ou mais devastadora e nociva do que qualquer temporal, vendaval, terremoto, maremoto ou tufão, a natureza humana é capaz de fatos e fotos que até Deus duvida. Em geral, nela existem mais tolices do que sabedoria. É por isso que assino embaixo de quem escreveu a célebre frase “É da natureza humana se destruírem”. Leitor assíduo de Immanuel Kant, também endosso a tese do filósofo alemão, para quem o homem é compreendido como uma criatura cuja singularidade está exatamente na capacidade de criar para si mesmo o seu caráter. Na visão de Sócrates, o homem é a sua alma, e a alma do homem é a sua razão.
Embora tenha sido catastrófica dos pontos de vista da insegurança física e material, o recado climático dado ao povo brasileiro por meio da devastação no Rio Grande do Sul proporcionou aos nacionais o que já foi amplamente apresentado para boa parte do mundo: enquanto uns servem para tudo, outros, a começar pelo Estado, não servem para nada. Infelizmente, essas descobertas normalmente ocorrem nas horas de dor. Às vezes, a dor é inevitável e silenciosa. Entretanto, é por meio da perda que continuadamente podemos nos encontrar novamente.
É no momento de dificuldade que surgem as possibilidades de mudança. Ganhamos sabedoria e experiência para caminharmos por caminhos menos tortuosos. Como dizem os pensadores, na vida sempre nos perdemos. Mas são as pessoas, não os sinais, que nos trazem de volta ao rumo certo. O país, o estado e a cidade são, pela ordem, nossa pátria, nosso prumo, nosso chão. Nada mais do que isso. O resto é por nossa conta. Para conseguir que alguém faça tudo por nós, apenas façamos. Como? Quando? Onde? A resposta de Dale Carnegie é simples: “Todas as vezes, em toda parte”.
Ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan pedia sempre para que seus comandados não esperassem soluções do governo. Segundo ele, o governo é o problema. E o que esperar dos políticos? Desses, o melhor é não imaginá-los como uma estrela colorida que virá “numa velocidade estonteante” para nos salvar. “Impávidos que nem Muhammad Ali e tranquilos e infalíveis como Bruce Lee”, eles são a própria natureza humana em ação: são os principais culpados da maioria de nossas mazelas, mas culpam a todos, menos a si mesmos.
A natureza não é imperfeita. Pelo contrário. Imperfeito são os dominadores, os que se acham donos do mundo ou parentes deles. É o caso da patriotada incapaz de enxergar além do próprio umbigo. Quando chega pela dor, a perfeição pode gerar dúvidas, mas merece algum crédito. Conhecido pelo extremismo, pelo golpismo e pelos patéticos ternos nas cores verde e amarelo, o empresário catarinense Luciano Hang, dono da Havan, deu o ar da graça e, num lampejo de lucidez, pediu ao povo gaúcho e brasileiro para que a tragédia não seja polarizada. Logo ele que se tornou um ícone da polarização política desde a eleição de 2018. Talvez o tenha sensibilizado os R$ 30 milhões levados pela correnteza do Rio Guaíba.
Seja para aparecer ou para apresentar seu novo perfil solidário, Hang mostrou a cara. O resto é detalhe. Os demais integrantes de seu antigo grupelho preferiram dar uma de avestruz. Oxalá o Rio Grande do Sul e os gaúchos consigam dar a volta por cima em tempo recorde. Todavia, ficará para sempre gravada na memória de todos a lição dada pelo cenário de destruição: Quem pretende apenas a glória não a merece. A regra é clara. Em algum momento da vida, temos de acreditar em alguém. Virei eleitor do atual governante por ojeriza ao adversário, mas tenho de admitir que o alguém de nosso tempo parece um homem só e enfrenta, sozinho, uma espécie de inimigo coletivo. É eu versus eles. É torcer para que, um dia, a natureza humana o perceba como mais humano do que suposto ladrão.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978