Alimentada durante décadas por disputas em Copa do Mundo, na Taça Libertadores e na comparação entre o desempenho de Maradona e de Pelé, a rivalidade atual entre Brasil e Argentina se limita ao futebol. Embora com alguns sintomas de uma soberba que não existe mais e, principalmente, com a arrogância, o convencimento, a empáfia, o desdém e os lampejos de selvageria de parte dos torcedores alvi celeste, a briga fica nos campos de futebol, nas quadras de voleibol ou de basquetebol e nas pistas de atletismo. No máximo no entorno das canchas. A rixa, no entanto, data do século 19, quando os dois países passaram a disputar a liderança regional na América do Sul.
Na verdade, acho que essa herança vem da hostilidade existente entre os ex-colonizadores Portugal e Espanha no processo de ocupação do continente. A disputa alcançou o ápice na Guerra da Cisplatina (1825/28), quando o Brasil, já independente de Portugal, se opôs às chamadas Províncias Unidas do Rio da Prata, mais tarde Argentina. A empáfia dos argentinos é histórica e justificável. Afinal, eles já pertenceram a um dos países mais ricos do mundo em PIB per capita, com uma classe média regionalmente bem pujante. Foram, não são mais. Depois da ditadura militar e da Guerra das Malvinas (1976/1983), a sucessão de crises econômicas levou a Argentina às cordas, de onde nunca mais saiu.
O mundo mudou, a roda girou, o Brasil cresceu, se consolidou e a Argentina empobreceu econômica, política, social e culturalmente. Duela a quien duela, hoje o ator global de peso é o Brasil. Duas das melhores escolas do mundo são brasileiras e são públicas. Sem dó e nem piedade, os brasileños expurgaram para o além um mito de armazém. Pobres de “marré deci”, los hermanos não querem nos ouvir e podem repetir nossa fracassada experiência, colocando um louco fantasiado de profeta na Casa Rosada. Veremos no que vai dar. Tomara que os torcedores do Boca Junior, do River Plate, do Huracán, Racing, Independiente, Estudiantes, Vélez Sarsfield, San Lorenzo, entre outros clubes, se unam contra o libertário e ultraconservador Javier Milei.
Do alto de minha ojeriza ao sistema unilateral de governo, acho que vai dar ruim. Aliás, para os fanáticos de lá, ruim sem ele, muito pior com ele. Se querem insistir, azar de vocês. Voltando às quatro linhas, alegria e paixão estão visceralmente vinculadas à tristeza, à rebeldia e à má educação de uma suposta minoria. Para quem ainda não perdeu a antiga pose de europeu e a afetação de povo diferente, o argentino que teima em rotular o brasileiro de escravo e de macaco deve ter se curvado definitivamente à superioridade do Brasil em todos os segmentos da economia, da política e, agora, do esporte, particularmente o futebol. Não à toa, os cinco últimos títulos da Taça Libertadores, o mais importante torneio do continente americano, estão em mãos de clubes nacionais.
O Fluminense, do portenho Gérman Cano, foi o vencedor de sábado passado. Mesmo sem o futebol envolvente de outras partidas, o tricolor das Laranjeiras ganhou do Boca Junior por 2×1 no Maracanã. Comprovando que nós não viemos da selva, no domingo (5) o Brasil fechou os Jogos Pan-Americanos em segundo lugar no quadro geral de medalhas. Foram 205 no total, sendo 66 de ouro, 73 pratas e 66 bronzes. A Argentina ficou em sétimo, com 75 medalhas, das quais somente 17 de ouro. Campeonatos mundiais de futebol, temos cinco, dois a mais do que eles. Sobre a diferença das medalhas olímpicas, perdi a conta. Em outras palavras, inimigos de ontem, adversários para sempre.
Nada tenho de pessoal contra os argentinos. O que sinto é coletivo. Fazendo minhas as palavras de um famoso narrador, ganhar em qualquer esporte é muito bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor. E siga la pelota. Que venham novas Libertadores em cima do Boca e do River. Ainda sobre o jogo de sábado, a equipe do Boca Junior jogou sob a inspiração do espírito xeneize de Juan Domingo Perón. O que eles não sabiam é que, no Maracanã, quem dá as ordens e cisca para frente é o anjo fantasiado de demônio tricolor Nelson Rodrigues. Tudo sob o olhar complacente do irmão e duende rubro-negro Mário Filho, que empresta seu nome ao estádio. Ou seja, da família para a família.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978