Prosa inesperada
Inimigos eternos firmam armistício temporário
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emCansados da sina de um correr atrás do outro, aqueles três resolveram se sentar, cada qual num canto, no beco repleto de rejeitos daquele povo da cidade. Quanto desperdício, alguém poderia dizer. Entretanto, o cachorro, o gato e o rato se deliciavam.
Enquanto cada um mastigava o seu quinhão, o cachorro puxou conversa com o desafeto de gerações. O gato, desconfiado com a atitude do seu eterno algoz, deu dois passos para trás. O rato, ainda mais arisco, foi para perto da sua toca. Qualquer coisa, se metia ali, de onde iria assistir ao circo pegar fogo.
— Pode ficar tranquilo, gato, hoje só quero prosear.
Mais dois passos para trás, o bichano não pareceu acreditar naquelas palavras.
— Já falei que hoje tô de boa.
— E desde quando? Por acaso andou fazendo terapia?
O cachorro soltou aquela gargalhada com a perspicácia do gato. Este, finalmente, resolveu dar crédito às palavras do antagonista. Tanto é que, confiante na própria agilidade para escapar mais uma vez, aproximou-se.
— Tá bom, cachorro. O que você quer conversar?
— Estava pensando aqui como é que poderemos proteger nosso beco. Já estamos ficando velhos. Olha para esses seus bigodes embranquecidos.
— Pior é você, que não consegue nem dar uma corrida sem ficar arfando que nem um cachorro.
O cachorro, mais uma vez, gargalhou com o que o gato disse.
— Errado você não está, meu amigo.
— Amigo? Agora somos amigos?
— Já que sou o melhor amigo do homem, não vejo problema em ter outros amigos. Que seja você, que já conheço há tanto tempo.
O gato encarou o cachorro e acreditou na fidelidade canina daquelas palavras. Em seguida, virou-se para o rato, que estava quase espremido contra a parede.
— E você aí, rato, pode chegar também.
O rato fez que não com a cabeça, mas o gato não se deu por convencido.
— Rato, olha pra minha barriga. Não vê que comi tanto que estou mais do que satisfeito?
Era verdade. E lá foi o rato, o mais cabreiro dos três, ficar perto. No entanto, para surpresa do cachorro e do gato, ele desembestou a falar que nem papagaio. E o danado tinha história. Depois de quase uma hora de tagarelice, o gato, talvez o menos paciente, resmungou.
— Cala essa matraca, rato!
— Desculpe, gato. É que tenho tanta coisa guardada, que me empolguei.
Durante mais um tempo, aqueles três ficaram se olhando, até que o rato, com vontade de falar mais um pouquinho, ficou mexendo o focinho de um lado para o outro e coçando as mãos.
— O que foi, rato? – perguntou o cachorro.
— A gente pode marcar outra reunião assim amanhã?
Emburrado que estava, o gato cortou o barato da sua presa de sempre.
— Não! Amanhã a gente volta a correr um atrás do outro.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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