Nada melhor do que lembrar Ivon Curi, que para fazer economia forçada (afinal, dinheiro que era bom, nada) foi morar numa pensão, onde a boia todo dia era só feijão, feijão. Esse realismo pulsante, que serve para ontem e hoje, vem a propósito de reportagem da Sputnik Brasil que conversou com especialista sobre o aparente paradoxo de o agronegócio nacional bater recordes enquanto parte dos brasileiros passa dias sem se alimentar.
Pesquisadores do grupo Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, uma parceria entre a Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB) estimam que 125,6 milhões de brasileiros sofreram com insegurança alimentar durante a pandemia do novo coronavírus. O número equivale a cerca de 59% da população do país e se baseia em pesquisa realizada entre agosto e dezembro do ano passado.
Por outro lado, o Brasil bate recordes de produção no campo. Em 2020, o agronegócio foi o único setor a crescer, o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio cresceu 24,31%, um valor recorde para o setor. Com o resultado, o agronegócio expandiu para 26,6% sua participação no PIB total, contra 20,5% de 2019.
Essa aparente contradição chamou a atenção de senadores, onde tramitam uma série de projetos para enfrentar o problema da fome. “A insegurança alimentar grave no Brasil, quando se come uma só vez por dia, atingiu 7,5 milhões de pessoas em 2020, contra 3,9 milhões em 2016. E com o agronegócio ‘bombando’! Para matar a fome do mundo, precisamos primeiro matar a fome dos nossos irmãos”, afirmou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) há algumas semanas.
A Sputnik Brasil conversou com Nilson Maciel de Paula, professor sênior Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da coordenação da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) sobre as características da insegurança alimentar no Brasil e possíveis estratégias para reverter o quadro atual.
Insegurança alimentar desde antes da pandemia
O Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), mas relatório da Organização da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO, em inglês) divulgado em meados de julho estima que 23,5% da população brasileira vivenciou insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, um crescimento de 5,2% em comparação com o último período analisado, de 2014 a 2016.
Nilson Maciel de Paula explica que até 2013 o nível de segurança alimentar da população se elevou. Inclusive, o Brasil deixou o chamado Mapa da Fome, sobre a situação global de carência alimentar, em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baseado em dados de 2001 a 2017 mostrou que, no decorrer de 15 anos, o programa reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%.
“A partir daí [depois de 2013], temos uma inversão do processo, que se agrava a partir de 2015, quando a política econômica sofre uma guinada na direção de uma maior obediência ao mercado financeiro, que é quando há um desmonte das políticas de proteção social que viam sendo executadas até então […]. Quando chegamos no contexto atual da pandemia nós observamos praticamente uma confirmação dessa tendência de 2015, que já é identificada nos levantamentos feitos em 2018, quando há um aumento significativo nos níveis de insegurança alimentar”, afirma o especialista.
Nilson de Paula destaca que há um agravamento dessa situação durante a pandemia devido às fragilidades sociais, com o aumento do desemprego, a precarização das relações de trabalho, o trabalho informal, a perda de renda etc.
O professor da UFPR frisa ainda que a insegurança alimentar não é democrática, atingindo algumas regiões, classes e raças com mais ímpeto.
“Nós verificamos que no Norte e no Nordeste do país, onde o nível de renda e de emprego são mais preocupantes, o nível de insegurança [alimentar] é mais elevado […]. As populações urbanas localizadas na periferia, em condições de moradia mais precárias, também apresentam um nível de insegurança alimentar mais elevado […] [e] as pessoas de cor parda e preta […] em comparação com aquelas que se declaram como brancas. Isso sugere que o fenômeno da insegurança alimentar reflete o fenômeno maior da desigualdade social, predominantemente, mas também da desigualdade regional do país.”
Alimentos proibitivos para mercado interno
Nilson de Paula recorda que a posição do Brasil nos mercados globais é de um grande protagonismo, com um modelo de agricultura baseado na alta escala de produção e em elevados níveis de produtividade. E isso se reflete em uma desconexão com o mercado interno do ponto de vista das necessidades alimentares da população.
“Esse modelo tem sido estimulado e impulsionado pela política econômica, que acaba valorizando muito o papel do agronegócio, do papel das exportações de commodities agrícolas para o equilíbrio da balança comercial. [Essa] agricultura exportadora tem um papel na dinâmica macroeconômica do país que acaba se distanciando daquilo que é algo essencial para a população que tem a ver com a segurança alimentar, com o abastecimento alimentar interno. Claro que isso é uma parte da questão, a outra está localizada na demanda, ou seja, as condições de demanda da população”, contextualiza o especialista.
Com a alta da inflação e quase 14,8 milhões de desempregados, as famílias brasileiras viram o seu poder de compra cair e foram obrigadas a mudar seu comportamento de consumo e, dessa forma, a diversidade dos alimentos comprados caiu.
“Vários produtos que compõem a cesta básica de consumo tiveram aumentos desproporcionais, aumentos que acabaram inviabilizando o consumo regular. Nesse sentido há uma precarização na qualidade da alimentação porque as pessoas passaram, lamentavelmente, a consumir mais produtos processados, industrializados, que são mais baratos […] e esses produtos mais baratos são aqueles que, do ponto de vista nutricional, não são os mais adequados. A resultante disso é um empobrecimento da qualidade, uma piora na qualidade da alimentação.”
Como reverter o quadro?
Na segunda-feira (9), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entregou à Câmara dos Deputados a medida provisória que prevê a implementação do Auxílio Brasil, novo programa social que pretende substituir o Bolsa Família. O Auxílio Brasil tem o objetivo de aumentar o valor dos pagamentos em pelo 50%, assim como a base de beneficiários, indo de 14,6 milhões para mais de 16 milhões. O valor médio do Bolsa Família atualmente é de R$ 189.
Nilson de Paula afirma que qualquer ajuda monetária é importante para as famílias que estão sem renda e vivem em uma condição de penúria. Todavia, o especialista teme pela sustentabilidade do novo programa.
“A questão é que esse auxílio está sujeito à própria racionalidade da política econômica, da política fiscal que talvez impeça a sua implementação nas dimensões daquilo que é necessário […]. Temos que olhar isso do ponto de vista da sua sustentabilidade e da sua extensão social. Porque isso vai depender das decisões políticas de um governo que é caótico, de um governo que não consegue colocar uma certa racionalidade da política econômica, adotada por eles mesmos, não conseguem combinar isso com as aspirações políticas do governo. Há uma inconsistência, uma contradição que nós ainda não sabemos [como serão solucionadas].”
O professor da UFPR acredita que a insegurança alimentar que aflige milhões de famílias brasileiras continuará mesmo após o fim da pandemia da COVID-19, mas admite que mudanças são possíveis caso o ambiente político no país mude.
“Uma vez superado o quadro da pandemia, é muito difícil que essa situação da insegurança alimentar seja revertida […]. É mais provável que reestabeleçamos o normal anterior, que era um quadro de profunda desigualdade social […]. [Mas] tudo isso vai depender do ambiente político. A sociedade brasileira está imersa em uma dinâmica social muito preocupante. A construção das condições para a superação da crise atual está situada no terreno da política e do engajamento da sociedade para recolocar o país em sintonia com as suas necessidades, com as necessidades mais prementes do ponto de vista da população mais empobrecida. Não acredito que isso vá acontecer no curto prazo”, conclui.