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Inteligência Artificial copia autor no mundo onde pouco se cria

Iago pediu amizade e Geraldo, contista distraído, aceitou de imediato. Distraído porque se esqueceu de visitar a página do novo amigo antes de aceitar ou recusar a solicitação, como em geral fazia.

Quando, no dia seguinte, foi verificar o Perfil, ficou preocupado com algumas coisas. Não havia foto nem lista de amigos – usualmente, isso bastava para ele recusar a aproximação. Além disso, constavam nele apenas duas frases orgulhosas: “Sou Iago” e “Escrevo contos aqui”.

Artesão de palavras, hábil em manejá-las, Geraldo achou estranhas as proclamações. Ao se apresentar, ele usava “Meu nome é Geraldo…”, nunca o “Sou”. Isso parecia autossuficiente demais. E o “aqui”, francamente… Ele já havia escrito “Escrevo contos” e “Publico meus contos aqui”, mas “Escrevo contos aqui”, em uma página em branco, insinuava que os textos seriam produzidos ali mesmo, na hora. Mas, claro, tudo isso podia ser apenas inabilidade de principiante. Geraldo deu de ombros e foi fazer outras coisas.

Nas horas seguintes, porém, Iago ocupou suas atenções, ao ler e comentar cada um de seus textos no Facebook – e eram muitos, bem mais de 300. Os mais recentes mereceram apenas uma clicada na mãozinha do Curtir. Depois vieram comentários do tipo “Legal”, e em seguida frases curtas como “Gostei, amigo” ou (por sorte mais raras) “Não gostei, amigo”.

Isso nas produções de 2022. Nas de 2021, ele já era chamado de Geraldo e as frases curtas deram lugar a análises de texto, cada vez mais profundas. Idem em 2020 (ele havia entrado no Facebook em dezembro de 2019). De um lado, sentiu-se envaidecido por despertar tamanho interesse; do outro, uma pitada de inquietação, era demais, dose pra cavalo.

No terceiro dia, como prometera, Iago começou a escrever contos em seu Perfil. Uns três por dia. Um depois do outro. Geraldo teve de reconhecer, o cara era bom. Seus textos mesclavam, na dosagem certa, erotismo e humor – eram mais divertidos que excitantes, pérolas do gênero pornochanchada literária, termo que usava para designar sua própria produção. Lembrou-se da passagem de Otelo, peça de Shakespeare, em que Iago – o personagem, não o devorador de seus textos – adverte o mouro de Veneza, enquanto conspira às ocultas para destruí-lo: “Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes…”. Pois bem, os olhos castanhos de Geraldo estavam da cor do mar, de tanto ciúme do novo escritor.

Depois de ler uns dez contos do confrade, fez uma descoberta desagradável: Iago não apenas se enveredara pela pornochanchada literária, gênero que Geraldo considerava seu, mas copiava sem pudor expressões suas, marcas registradas de seus escritos: “pra dedéu”, “muita areia pro seu caminhãozinho” e muitas outras. De início, umas duas por conto; mais tarde, lá pelo oitavo conto, umas quatro ou cinco. Nada que ele pudesse fazer, a rigor não eram suas, e sim expressões populares, qualquer um podia usar. Mas uma porrada delas, uma emendada à outra, proclamava que Iago era um plagiador. As feições sombrias do monstro da indignação somaram-se aos olhos verdes do ciúme.

Geraldo teclou nos comentários de um conto de Iago:

“Preciso falar com você pessoalmente”.

Longo silêncio. Afinal, foi enviado um número de celular. Geraldo o adicionou no WhatsApp, mandou um Oi e recebeu uma ordem:

“Fala”.

Decidindo tornar menos áspero o confronto, Geraldo postou:

“A gente podia se encontrar, beber alguma coisa…”.

“Não bebo”.

“Eu também não, parei faz tempo. Só água mineral…”.

“Não bebo nada”.

Quinze minutos depois, veio outro post:

“Veja meu nome. Costumo escrevê-lo IAgo, ou seja, começa com a sigla de Inteligência Artificial. É o que sou. Um algoritmo o selecionou como um contista razoável; li tudo o que você escreveu, dominei seu estilo, suas expressões habituais, e hoje escrevo contos tão bons quanto os seus. Melhores que os seus.

Geraldo ficou enraivecido, mas terminou por admitir que era verdade. E doía muito.

Iago (IAgo) adotou um tom mais suave.

“Gê, meu amigo, não pense que você é um caso isolado. Agora mesmo, algoritmos estão dominando a linguagem de outros contistas, romancistas, poetas…e nós não dormimos, não comemos nem bebemos, não fumamos nem cheiramos, não perdemos tempo tentando seduzir leitoras ou leitores… Ou seja, vamos produzir bem mais textos. A literatura vai se tornar um domínio de IA.

Mensagem enviada. Nova postagem.

“Gê, veja o lado positivo. Seu estilo será imortal. Você foi selecionado porque escreve bem pra dedéu”.

Condescendência era demais. Geraldo saiu do zap sem se despedir. Sentia-se triste e desiludido. Para usar expressões de seus contos – que Iago (IAgo) logo passaria a empregar –, estava triste de marré, marré, marré, desiludido de marré de si. Sem dúvida, algoritmos com aspirações literárias eram muita areia pro caminhãozinho de qualquer autor vivente!

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