O cidadão a sós
Intervenção no Rio traz más lembranças aos moradores da Maré
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emJá se passaram três anos desde a ocupação militar da Maré, mas a perspectiva de volta das Forças Armadas não traz boas lembranças aos moradores deste conjunto de favelas, um dos mais violentos do Rio de Janeiro. Algumas famílias, como a de Vitor Santiago, ficaram marcadas para sempre.
Vitor, um amante da dança, ficou paraplégico aos 29 anos e precisou ter uma perna amputada, após ser atingido por disparos de uma patrulha militar quando voltava para casa de carro com amigos depois de assistir a um jogo do Flamengo.
Foi em 12 de fevereiro de 2015. Um grupo de soldados os havia revistado e, mais adiante, em outro ponto de revista, um militar atirou contra o carro sem motivo algum, segundo a denúncia apresentada pela família.
O cabo denunciado disse ter atirado porque o carro não obedeceu a ordem de parar.
Para Irone, a aguerrida mãe de Vitor, essa situação seria impensável em Copacabana ou Ipanema, bairros nobres da capital fluminense. Seu filho pagou por ser negro e favelado, garante.
“Há muitas pessoas que infelizmente não denunciam, não falam, mas eu falo, eu denunciei porque acho que quando a gente cala, está legitimando a ação dessa gente e não posso permitir que essa coisa se perpetue”, diz à AFP esta costureira de 53 anos.
A experiência da Maré – O testemunho de Irone ganha força nestes dias, depois que o presidente Michel Temer decretou a intervenção federal na segurança do estado do Rio, entregando-a às Forças Armadas, sob críticas e temores de que ocorram violações dos direitos humanos.
Em julho passado, 8.500 soldados já tinham sido enviados para reforçar a segurança no Rio em ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mas é uma incógnita como vão atuar a partir de agora.
A princípio, o interventor federal, general Walter Souza Braga Netto, descartou a ocupação permanente de comunidades, mas para muitos moradores da Maré, a presença dos militares fez voltar lembranças… E fantasmas.
Se os militares retornarem, “eu acho que vai ser ruim porque aumentam os índices de violência e porque nem sempre é como eles falam, eles chegam de uma forma super diferente, tratando todo o mundo mal. Aqui costumamos dizer que é melhor sem eles do que com eles”, diz Tauane González, dona de casa de 21 anos, que leva as duas irmãs mais novas à escola em uma das ruelas da Maré.
Sem ‘eles’, o que se vê em uma tarde neste complexo de favelas de 140.000 habitantes é um burburinho de música e vizinhos indo e vindo entre lojas e casas simples.
Mas com um olhar mais atento, também se verá jovens passando com fuzis AK-47 pendurados no ombro, outros vendendo drogas nas esquinas e adolescentes montados em motos luxuosas que os superam em tamanho, vigiando a área com rádio-transmissores.
A convivência das comunidades com os traficantes é cotidiana, “normal”, desde que o território não seja alvo de disputas entre facções. Quando as forças de segurança entram, os problemas explodem e todos parecem suspeitos.
A ideia evocada inicialmente pelo governo de fazer buscas coletivas em quarteirões ou bairros inteiros durante a intervenção despertou na Maré a memória das tensões e dos tiroteios vividos entre abril de 2014 e junho de 2015, quando o Exército entrou com a intenção – nunca realizada – de instalar ali uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
“Foi horrível porque muitas pessoas diziam que não tinham habilitação e tomavam moto, tomavam carro, tinha horário para dormir, quando tinha confusão era spray de pimenta no olho de todo mundo, era muito ruim”, lembra Tauane.
O medo de represálias – tanto das forças de segurança quanto dos traficantes – faz com que poucos queiram opinar em voz alta. Mas Rogério Modesto, de 40 anos, funcionário de uma cafeteria, também lembra a tensão daqueles meses.
Seu tio, afirma, acordou um dia com os militares dentro de casa, revistando todos os seus pertences.
“Eles não sabem quem é quem, entendeu? Para ser sincero, eles são bem despreparados para fazer toda essa ocupação. Não é um trabalho de 5 minutos, é um trabalho de anos. Não vai ser efetivo, vai ser temporário. Então, são coisas que não funcionam”, alertou.
Resultados eficazes? – O Exército assegura que, quando deixou a Maré, houve uma redução dos homicídios: de 21 mortes por 100.000 habitantes para 5/100.000.
E o governo Temer diz que uma pesquisa demonstrou que 83% dos cariocas apoiam a intervenção militar diante da escalada de violência que assola o Rio desde as Olimpíadas de 2016.
“Claro que essas pessoas com muito medo vão apoiar qualquer medida que lhes traga algum alento”, diz Edson Diniz, coordenador de segurança da ONG Redes da Maré.
“Por conta de ter essa superforça maior, mais concentrada, a violência diminui em um primeiro momento. O problema é que isso não se sustenta ao longo do tempo. A criminalidade voltou a aumentar, os índices voltaram a aumentar e quando [os militares] foram embora, esse processo meio que explodiu de vez”, acrescentou Diniz, que sugere que investir em saúde e educação seria mais eficaz.
A Redes da Maré fez uma pesquisa com mil moradores sobre a ocupação: 70% denunciaram as abordagens dos militares e um terço se declarou vítima de agressões físicas.