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Já que papel aceita tudo, terror ganha espaço na banda ocidental

O terror tem seus opositores fraternos. Eles vivem em Paris, lecionam em boas universidades norte-americanas, publicam em nossas melhores editoras. Estão por aí. Diante do horror e da barbárie, não perdem a chance de relativizar.  Foi o que se viu, mais uma vez, no debate que se seguiu ao massacre do Charlie Hebdo, em Paris.

Opositores fraternos, por óbvio, registram sua repulsa pelo acontecido. Solidarizam-se com as vítimas e dizem que os irmãos Kouachi, apesar de tudo, fizeram uma coisa errada. Sua crítica se concentra no método. Eles tinham, vá lá, suas razões. A revista, de fato, passou do limite. Os EUA, como explicou o escritor Tariq Ali, invadiu o Iraque, em 2003, e aqueles meninos assistiram a tudo pela televisão. Viram imagens das torturas na prisão de Abu Ghraib. Estavam com raiva. Mas agiram errado, apesar de tudo.

Opositores fraternos não pertencem exclusivamente a esta ou aquela ideologia. Eles podem ser encontrados entre um certo de tipo de conservadorismo estúpido, relativamente abundante nas redes sociais, para quem não se deve brincar com a religião alheia. “Ódio gera ódio”, li em um post na internet, sugestivamente feito por um professor de filosofia de uma universidade federal.

Seu mais emblemático representante talvez seja Jean-Marie Le Pen, que nos dias que se seguiram ao massacre acusava a revista de blasfêmia e vulgaridade, e bradava, orgulhoso, “eu não sou Charlie”.

A artilharia mais pesada da oposição fraterna veio, não obstante, do chamado campo de esquerda. Mesmo que fosse previsível que isto acontecesse, confesso que me surpreendi com a forma mais ou menos explícita de seu discurso  compreensivo em relação ao terror. No uso explícito da tragédia para atacar seus inimigos na disputa política. Na fixação em enquadrar qualquer coisa na conversa de esquerda x direita. O terrorismo encontra sua audiência no Ocidente.

A argumentação usada por essa turma é relativamente uniforme. A estratégia é enquadrar o massacre em um quadro mais amplo, que envolve a guerra ao terror, no pós-11 de setembro, a opressão aos imigrantes, a política de Israel, o passado colonizador europeu, a crise (sempre ela) do capitalismo. Um conjunto mais ou menos previsível de razões que, devidamente ordenadas, produzem uma sutil inversão da culpa pelo acontecido. Ela passa a ser sistêmica. O radicalismo islâmico torna-se um ator secundário. O Ocidente opressor, tendo à frente seu vilão habitual, os EUA, passa a ocupar o banco dos réus.

Tariq Ali escreveu artigo intitulado “Guerra entre Fundamentalismos”. O que testemunhamos, diz ele, “é um conflito entre fundamentalismos rivais, cada um mascarado por diferentes ideologias”. Tentei descobrir, no artigo, em que consistia exatamente o fundamentalismo rival dos terroristas, mas não consegui.

Ele menciona certas restrições francesas a piadas antissemitas, o uso de tortura na guerra ao terror, as ações militares francesas na Síria, a direita francesa e coisas assim. Para Tariq Ali, misturando tudo, o Ocidente se equivale ao terrorismo islâmico. Ele não consegue perceber muita diferença. Se vivesse em Cabul, à época do Taleban, ou em Teerã, ao invés de Londres, talvez conseguisse. Mas não o faz, ao menos até o final do artigo.

O discurso se parece com o argumento segundo o qual a frente nacional e o fascismo islâmico são da mesma seara. Argumento de mau gosto, visto utilizar uma frase de Charb, diretor de redação da Charlie Hebdo, evidentemente retirada de contexto. Não passa de um exercício de leviandade intelectual comparar um massacre terrorista com a ação política de um partido legalmente constituído.

Um partido do qual pode-se (com razão) não gostar, mas perfeitamente legítimo e incorporado à democracia francesa. Espécie de falácia da equivalência comum no dia a dia das discussões políticas (não houve quem chamasse o adversário de “nazista”, em nossa última campanha eleitoral?). O que me surpreende é que o truque seja usado por intelectuais com algum preparo. Talvez o façam por imaginar que serão lidos apenas por leitores do devidamente alinhados. Em parte, é isso mesmo que acontece.

É o caso de Noam Chomsky. Em um entrevista à revista digital Raw Story, ele produziu sua versão particular da “falácia da equivalência”: comparou o massacre, entre outros episódios, com a morte de 50 civis decorrentes de ações do exército norte-americano na Síria. Confesso que li várias vezes para me certificar que era isso mesmo que ele dizia.

Chomsky está dizendo que, de um modo geral, os irmãos Kouachi equivalem-se a Barack Obama. Com alguma vantagem para os primeiros, pensei eu. Ao menos tiveram a coragem de fazer pessoalmente o serviço, ao invés de enviar os seus homens. Chomsky dá de ombros para o fato de que o exército americano é uma força regular, que integra uma coalizão internacional, em ação contra um grupo genocida. E cujo foco não é punir infiéis nem produzir a morte de civis.

Na lista dos opositores fraternos não poderia faltar, por óbvio, o filósofo Zlavoj Zizek. Em um artigo na revista New Statesman, Zizek define o fundamentalismo como uma “reação contra uma falha real do liberalismo”. Por isso ele seria “repetidamente gerado pelo liberalismo”. Sociedades liberais presumivelmente tem muitas falhas, e fiquei imaginando qual delas teria produzido o fundamentalismo.

Zizek não explica, mas parece oferecer uma pista quando diz que a permissividade liberal e o fundamentalismo são dois polos gerando e pressupondo um ao outro. Para ele, não são sociedades teocráticas ou seitas radicais, seja no Irã, no Paquistão ou na Arábia Saudita que produzem o fundamentalismo. Precisamente sociedades que não atravessaram processos de secularização e modernização liberal. Nada disso. Merecemos nós as chicotadas. A democracia liberal e sua maldita sociedade de direitos.

Zizek busca inspiração em um frase de Horkheimer sobre fascismo, nos anos 30, para concluir que “quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal, deve também ficar quieto com respeito ao fundamentalismo religioso”.

Parece esquecer o óbvio: Horkheimer se referia a um fenômeno (o fascismo) produzido no coração do mundo europeu. O que obviamente não é caso do fundamentalismo islâmico. Além da analogia apressada, o nonsense: era exatamente a favor, e não contra, a democracia liberal e seus valores que marchou a multidão, em Paris, seguindo o presidente Hollande. É a crença na liberdade que deve se fazer ouvir, ao invés de se calar.

Zizek parece dizer que só uma alternativa ao capitalismo poderá resolver o problema do terrorismo. O que não deixa de ser curioso, visto que todos os sistemas que se propuseram esta tarefa se tornaram, sem exceção, eles mesmos formas de terrorismo de Estado. Mas isto é só um detalhe. O papel aceita tudo.

Fernando Schuler

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