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Jorge, o santo amado por católicos e religiões afro

Rio de Janeiro (RJ), 20/04/2023 – Igreja de São Jorge, na Praça da República, no centro da capital fluminense. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A devoção a São Jorge sempre fez parte da vida de Soneli Gomes. Sua relação com o santo cristão vem, segundo sua memória, desde criança. “Minha mãe vai fazer 93 anos e ela sempre foi muito devota. E eu sempre acompanhei minha mãe nessa trajetória. Eu tenho São Jorge na minha casa, tenho camisa de São Jorge. Ele é o santo da minha proteção. Pelo menos uma vez por mês tenho que vir na igreja [de São Jorge, no centro da cidade do Rio de Janeiro]”, disse a aposentada de 66 anos de idade.

O santo, que teria sido um soldado romano nascido na Capadócia, atual Turquia, e martirizado por sua fé cristã, é uma figura religiosa popular. Mesmo que as histórias sobre ele estejam envoltas em lendas.

No Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, é alvo não só de veneração por muitas pessoas, como também se tornou um fenômeno pop, estampando camisetas, tatuagens e sendo tema de diversas músicas, livros e até de uma telenovela, a Salve Jorge.

Mundialmente, é considerado protetor de escoteiros mirins, soldados e cavaleiros. É padroeiro de países como Inglaterra, Geórgia e Etiópia. Aqui no Brasil, um dos times de futebol mais populares do país, o Corinthians, escolheu o Santo Guerreiro como seu padroeiro. A sede do clube é chamada Parque São Jorge.

No Rio de Janeiro, onde é venerado por sambistas, e pela cultura do samba em geral, a devoção a ele atingiu outro patamar. O dia do santo, 23 de abril, é feriado estadual. E, em maio de 2019, ele se tornou oficialmente padroeiro do estado.

O Corpo de Bombeiros do estado tem na figura dele seu protetor, assim como policiais militares.

O mestre em Educação João Victor Gonçalves Ferreira, que estudou as festividades de São Jorge na cidade do Rio, diz que o santo cristão é, na verdade, uma figura múltipla. “Aqui no Brasil, ele ganhou muitos sentidos, em especial quando ele é associado aos orixás. Aqui no Sudeste, São Jorge é Ogum, o orixá da tecnologia, do ferro, das batalhas, o orixá guerreiro”.

Na época da escravidão, os africanos aprisionados e trazidos à força para o Brasil passaram a associar seus orixás a figuras católicas a fim de poder manter sua devoção sem serem importunados pelos escravistas cristãos, dando origem assim ao sincretismo religioso brasileiro.

Ogum, deus do ferro e da guerra na mitologia iorubá, foi logo associado ao soldado romano martirizado. “São Jorge ganha um outro contorno quando a ele são associadas, pelo processo sincrético, algumas características típicas de Ogum. Então é muito comum você, por exemplo, ver cerveja sendo oferecida a São Jorge. No Rio de Janeiro, quem entrou num boteco, já viu um São Jorge, com um copo de cerveja. Isso é típico de São Jorge, porque também é típico de Ogum. O sincretismo trouxe para São Jorge um valor ainda maior. Agregou a ele, valores, cultos e práticas muito simbólicas. E criou-se uma mítica em torno desse santo”, explica Ferreira.

E, apesar de hoje nem todos devotos terem essa noção muito clara, as duas figuras são associadas, porém distintas. “A proximidade com as mitologias [de São Jorge e Ogum] faz com que as pessoas associem [as duas figuras]”, disse a pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Ana Paula Alves Ribeiro.

Segundo Ana Paula, a concentração de terreiros no Rio de Janeiro pode também explicar a dimensão do culto a São Jorge no estado. A pesquisadora acompanha as festas dedicadas ao santo, que costumam reunir milhares de pessoas em 23 de abril, há mais de 20 anos. Ela coordena o Museu Afrodigital da Uerj, que reúne registros fotográficos de festividades populares cariocas, como as dedicadas ao Santo Guerreiro, feitos desde 2012.

“São Jorge tem uma penetração na cultura popular, e na cultura afro-brasileira, que poucos santos têm. A gente vai encontrar pessoas com camiseta, com medalha, com anel. Você vai encontrar São Jorge na porta das casas, nos azulejos, em imagens. Há um repertório sobre São Jorge que é cantado pela música popular brasileira”.

O cantor e compositor Zeca Pagodinho, que tem uma imensa estátua de São Jorge em sua casa, em Xerém (RJ), é um dos artistas que transformaram sua devoção em música. Ele compôs, com Ratinho, a canção Lua de Ogum, e também gravou Pra São Jorge, de Pecê Ribeiro, e Ogum, de Marquinhos PQD e Claudemir.

“Minha devoção por São Jorge vem desde rapazinho. Eu via os malandros, os sambistas, com cordão de São Jorge. Todo botequim tinha uma estátua de São Jorge. É um guerreiro, cavaleiro do céu”, disse Zeca Pagodinho.

A pesquisadora Ana Paula acredita que haja uma identificação dos brasileiros com a simbologia guerreira do santo. “A questão de ser um santo guerreiro, mas também de vencer as demandas [atrai os devotos]. As demandas podem não ser grandes ou visíveis. Podem ser sentimentais, amorosas, espirituais, religiosas. As demandas são desde enfrentamentos cotidianos até aqueles grandes momentos de encruzilhadas em que a gente precisa tomar uma decisão. Isso tem um grande apelo”.

O mestre em Educação João Ferreira lembra que, na cidade do Rio de Janeiro, São Jorge é uma espécie de padroeiro não oficial, já que a função oficial pertence a São Sebastião.

“Diferente do nosso padroeiro, São Jorge não é representado na sua morte como São Sebastião e as flechas. São Jorge é simbolizado como um grande guerreiro, aquele que vence os desafios e as batalhas, que matou o dragão. E essa construção simbólica é muito significativa pro brasileiro, que é um povo que sempre associa o cotidiano a essa questão da batalha. Pro fiel de São Jorge, as batalhas cotidianas são o dragão que a gente mata todo dia. Se ele pode matar o dragão, ele pode ajudar a vencer questões pessoais, de trabalho, de saúde. Por isso tanta gente se apega e faz promessas ao santo”.

Marcelo Lopes encontrou em São Jorge um alvo de sua fé há cerca de 15 anos. “Eu precisei me apegar a alguma crença. Precisei acreditar em alguma coisa, porque eu não acreditava em nada, e isso me fez muito bem. São Jorge é guerreiro e eu sou um cara guerreiro, trabalho desde pequeno, sempre gostei de ter o meu próprio dinheiro e é nele que eu confio”, disse o técnico de eletrônica de 52 anos de idade, que todos os anos visita a igreja do centro da cidade.

Para João Ferreira, o santo extrapola inclusive as religiões que se associam a ele no Brasil (o catolicismo e os cultos de matriz africana). “Você encontra uma série de pessoas que dizem que não são de nenhuma religião específica, mas que são devotas de São Jorge, ou como elas dizem, ‘amigos de Jorge’ ou ‘filhos de Jorge’. É interessante ver o quanto esse santo supera a própria institucionalização religiosa, quando as pessoas se vinculam a ele como o patrono da fé. É por isso que, no Rio de Janeiro, você sai a rua o tempo todo e encontra muitos carros com adesivos de São Jorge, muitas camisas de São Jorge. São Jorge virou quase um símbolo pop”.

No Rio de Janeiro, o dia do santo é celebrado com cerimônias em terreiros e com festas nas igrejas dedicadas a ele, como as igrejas de São Jorge, do centro, e de Quintino, na zona norte da cidade. Outra forma comum de celebrar o santo são as feijoadas promovidas por seus devotos.

“Muitas festas nessa data de 23 de abril vão estar fazendo feijoadas nas ruas, seja comemorando com os amigos seja doando. A feijoada de São Jorge é a comida de Ogum. O feijão é a comida que se oferece a Ogum”, explica João Ferreira.

As festas promovidas pelas igrejas costumam reunir dezenas de milhares de fiéis nos dias 23 de abril. O padre Dirceu Rigo, pároco de Quintino, espera que até o fim deste domingo (23), cerca de um milhão de pessoas tenham participado das missas, das comemorações e da procissão.

“O povo carioca é um povo muito sofrido e batalhador. E ele se identifica muito com São Jorge. Essa que é a devoção bonita, de não desanimar, de não perder a esperança, mas lutar. E isso que é bonito de ver nos devotos de São Jorge. Mesmo nas dificuldades, às vezes na tristeza, na dor, no sofrimento, não desanima. Vão à luta para vencer a ‘batalha”, disse o padre.

De acordo com o próprio Vaticano, a história do santo é considerada lendária, já que muitas narrativas que o envolvem são claramente fantasiosas. A mais famosa delas teria nascido no período das Cruzadas e relata que Jorge teria salvado uma princesa de um terrível dragão que vivia em um pântano na Líbia.

Essa lenda, aliás, é eternizada por muitas imagens do santo, que o retratam montado em um cavalo, espetando sua lança em um dragão.

Desde 1969, as festas em sua homenagem são consideradas apenas facultativas pela Igreja Católica, devido à ausência de algumas informações sobre sua vida. “Como no caso de outros santos envoltos em lendas, a história de São Jorge serve para lembrar ao mundo sobre uma ideia fundamental, de que, no fim, o bem triunfa sobre o mal”, informa o site oficial do Vaticano.

“O dragão que ele lutou não foi o bicho [retratado nas imagens]. O dragão era a falta de fé quando o imperador Diocleciano [sob cujo governo Jorge teria sido martirizado] convocou todos os governadores e prefeitos e disse que eles deveriam perseguir os cristãos e matá-los”, disse o padre Dirceu Rigo.

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