Cuidado com o palavreado
Jornalismo vira sacerdócio louco no dia-a-dia dos jornalistas
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emUm de meus chefes mais queridos, Pinheiro Júnior, disse certa vez que, assim como o índio, jornalista não tem dia. Ambos estão em extinção, mas, segundo ele, o profissional do jornalismo leva a sacrificada e vilipendiada vantagem de manter a sociedade informada, obrigando-a a pensar e a pesar acontecimentos destinados à História maior ou menor. Cachaça, droga sem impurezas ou sacerdócio? Não importa o que seja. Importante é acordar, tomar café, almoçar e jantar com a notícia na boca. Dormir somente quando o dia termina para a maioria do povo. Jamais fui repórter por um dia. Sou e sempre serei repórter todos os dias. Comecei na polícia e terminei na política, editorias cujas manchetes normalmente lembram a prisão.
Passei pelo esporte, setor onde me realizei e de onde só saí porque o alambique de Brasília, centro do poder e das drogas lícitas, me convocou. Gostei. Vesti azul, minha sorte mudou, mas as baias da turma do futebol nunca saíram de minhas veias. Nelas me graduei, fiz pós, mestrado, doutorado e cursos de humor por correspondência com craques das pretinhas (as teclas da máquina). Tive o privilégio de, como repórter esportivo de jornais cariocas, viajar o Brasil, cobrindo principalmente as quatro linhas do esporte bretão. Além de descortinar e ouvir histórias fantásticas, aprendi que futebol é do povo e para o povo. Hoje, infelizmente, é para os mágicos empresários. A maioria deles é capaz de transformar rapidamente pernas de pau em milionários e ídolos de uma massa tão carente de heróis que eleva à condição de mito um ser abjeto e absolutamente ineficiente.
A convite do irmão Gerson Gonçalves, fui ao Piauí para acompanhar, ao lado do companheiro Sebastião Benjamin de Oliveira, uma partida entre o Flamengo local e o River, o grande clássico do Estado. Apelidado de Piscinão, a cancha oficial era denominada à época Estádio Governador Mão Santa. E o sujeito não roubava. Ele tinha a mão santa porque era ginecologista e, por força do hábito, bastava tocar nas partes pudendas femininas e saía mais um piauiense. E foram milhares. O jogo foi realizado em Parnaíba, terra do abridor de virilhas. Por uma dessas obras do acaso, perdemos a condução e tivemos de acompanhar o jogo de Teresina. Achei interessante ouvir o narrador da Rádio Clube da capital, que estava sendo inaugurada naquele dia.
Salomão De Las Vegas foi apresentado ao público piauiense como locutor oficial e, de imediato, informado que precisava criar um bordão para marcar as jornadas esportivas. Tudo isso ao vivo. Conhecido em todo o Nordeste pela rapidez de pensamento, o empolgado narrador precisou de apenas alguns segundos para criar seu bordão: “Atenção ouvintes da pioneira Rádio Clube, quem nada é peixe e quem enche cú de judas é mulambo”. Obviamente ele esqueceu que vivíamos uma ditadura. Lotadas, as arquibancadas do Piscinão por pouco não foram abaixo. Atordoado com a repercussão, Salomão foi substituído na hora. Claro que a emissora foi temporariamente tirada do ar pelo extinto Dentel e o estádio, de Mão Santa, virou Comendador Pedro Alelaf.
Como quem está na chuva é para se queimar, na mesma viagem fui designado para cobrir, em Natal, uma partida da Copa do Brasil entre ABC e América do Rio. No gramado do belo Frasqueirão, ao lado de um jovem repórter de uma agência radiofônica de Recife, ouvia o narrador da Rádio Poti tecendo loas a Dirran, jogador meio agalegado, atarracado, mas rápido como um raio. Craque da equipe norte-riograndense, era Dirran pra cá, Dirran prá lá e Dirran pra acolá. Dirran pegava na bola e enlouquecia o moço do microfone: “Meu Deus, Dirran é um cracaço”. No fim do jogo, claro que Dirran foi eleito o melhor em campo. Vendo todo aquele sucesso, o colega radialista, à beira do gramado, aproximou-se de Dirran para uma entrevista exclusiva e ao vivo. Quase todo o Nordeste acompanhava a partida. “Meu caro Dirran, você tem ascendência francesa?”, perguntou o estabanado repórter.
Simplório, assustado com o repentino sucesso e espantado com a indagação, o inocente jogador respondeu para o Pernambuco do clã dos Seabra, para o Rio de Janeiro e para boa parte o Brasil: “Não sinhô. É que sou baixinho e, por isso, meu apelido é cú de rã. Aí os cabra da narração, que num pode falá nome feio na rádio, abreveia”. Ficou o dito pelo não dito, mas nunca mais ninguém ousou entrevistá-lo ao vivo. Também ficou a lição para os apressadinhos: cuidado com os interlocutores, principalmente com os locutores. Quanto ao jornalismo e a cachaça, a metáfora ocorre por causa da compulsão. Jornalista e pinguço são compulsivos, pois escrevem e bebem 24 horas por dia, 365 dias por ano, até em férias ou desempregado. Pão e padeiro às vezes tardam, mas a danada da branquinha e o destilado repórter não falham. Sacerdócio ou não, a verdade é que somos todos devotos da cachaça. Ainda que não beba, voto de olhos fechados com o relator.