Marta Nobre e Otávio Medeiros Jr*
“Ainda há, infelizmente, uma preponderância da vontade política sobre a convicção técnica. É obvio que política é importante, mas em determinadas questões a opinião técnica deve ser incorporada ao posicionamento político, não o contrário” (…); “os proprietários de lotes em condomínios devem estar atentos para o real valor da terra”.
As frases são de José Carneiro da Cunha Neto, professor-doutor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de Brasília. Foi dita em breve intervalo na sala de aula, na manhã desta quarta-feira, 16.
O que disse José Carneiro, ex-presidente do Conselho Fiscal da Terracap, serviu como aperitivo de entrevista que seria concedida em seguida a Notibras, em almoço onde o prato principal foi Camarão na Moranga, regado a sucos de cajá e graviola. Como sobremesa, um recado para os condôminos que sonham ter sua situação regularizada.
O tema principal da conversa, claro, foi a ocupação de terras em Brasília. Ele alertou, por exemplo, para a necessidade de a sociedade estar atenta à regularização fundiária, em especial dos condomínios, sem prejuízo de outras áreas. Um dos problemas, advertiu, são os preços formatados pela Terracap.
– Existe risco de manipulação (do preço da terra). Há situações em que o preço arbitrado esquece métodos rígidos. Isso torna o preço encontrado não só inadequado, como completamente inconsistente, afirmou.
Mas, segundo José Carneiro, nem tudo são espinhos. Ele aposta em soluções práticas e técnicas a partir da chegada do engenheiro Júlio César de Azevedo Reis à presidência da Terracap, oficializada na terça-feira, 15. Com certeza, afirmou, “o Júlio vai destravar o processo de regularização de imóveis rurais, que perdeu muito de seu folego”.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista
1) Qual a função do Conselho fiscal da Terracap?
José Carneiro – Compete a qualquer Conselho Fiscal o acompanhamento da legalidade e adequação dos atos da administração de uma companhia. Como muitos desses atos terminam consolidados por meio das Demonstrações Financeiras da empresa, faz-se necessário que os membros do Conselho tenham domínio da área. Quanto mais importante é a empresa para seus acionistas, maior deverá ser o cuidado com a qualidade do Conselho.
Em regra, exige-se que ao menos um dos membros do Conselho tenha formação em Contabilidade. Todos os demais devem ter formação específica em Economia, Administração, Contabilidade ou Direito. Da mesma forma que não se nomeia um economista para fazer uma obturação, ou prótese dentária, não se nomeia um pedagogo para fiscalizar balanços e contratos.
É importante notar a diferença entre o domínio de, por exemplo, orçamento público, e as atribuições de um Conselho Fiscal, onde os integrantes devem entender de finanças empresarias, pois analisarão informações sob a ótica da Lei 6.404/76.
Evidência de como o relapso relativo à composição de Conselhos, seja o fiscal ou de administração, é grave, são as diversas falências de grandes bancos americanos ao longo da Crise Suprime, ou mesmo a absurda compra, pela Petrobrás, da refinaria de Pasadena. Estudos evidenciaram que a inadequação em termos de formação e conhecimento dos Conselheiros terminou por comprometer a capacidade de fiscalização sobre a Administração e foi, em parte, a responsável pelos problemas.
A regra é simples. Ou os conselhos Fiscal e de Administração são de fato independentes e qualificados, ou não passam de uma forma para se aumentar a remuneração de algumas pessoas próximas ao poder. E, independência, implica em inexistência de conflitos de interesse.
2) Como a sociedade poderia avaliar e cobrar maior qualidade na formação desses Conselhos.
José Carneiro – Simples. O nome e a formação dos Conselheiros é público. O povo deve exigir que cada empresa Estatal divulgue os dados dos membros, incluindo seus currículos. Se os conselhos forem dominados por ministros, secretários de Estado, assessores, e outros agregados políticos, ficará evidente que não há independência.
Se você evoluir na análise e observar a formação dos conselheiros, se forem professores de português, médicos, biólogos etc resta evidenciado que nem mesmo houve seriedade na seleção dos membros. Obviamente, que, se for um hospital, se esperaria ao menos um médico no Conselho de Administração, se for na Terracap, ao menos um arquiteto urbanista, e assim por diante.
Isso significa que as mesmas práticas que levaram a Petrobrás para o buraco, onde a composição politizada dos Conselhos teve especial destaque, segue em andamento. Ou seja, se você abomina o que houve na Petrobrás, deve abominar também todo e qualquer governante que aja igual, pois o nível de compromisso dele com a saúde e sobrevivência da empresa estatal é inferior ao agrado que pretende dar ao amigo, ou aliado político.
3) Mas você teve um cargo executivo concomitante com a presidência do Conselho Fiscal…
José Carneiro – É verdade.
4) Isso não torna sua posição incoerente, ou no mínimo hipócrita?
José Carneiro – Não, minha experiência apenas reforça a questão. Se houver alguma independência, mesmo quando o conselheiro for ocupante de cargo executivo, nomeações no governo e no Conselho deveriam ser dissociadas. Se há correlação, e há, teremos evidência da completa dependência.
5) O que motivou sua saída da Terracap?
José Carneiro – Meu afastamento do governo está associado à defesa daquilo que eu acreditava e acredito, como a escolha certa. Ocupava, no Executivo, um cargo de livre nomeação. Tão logo minha posição técnica divergiu da opinião da secretária, ela optou por minha exoneração. É escolha legítima e atribuição dela. Já no conselho Fiscal, a história deveria ter sido diferente, mas não foi. Sendo a vaga originalmente ocupada por mim, foi assumida pela própria secretária que decidiu pela minha exoneração do Poder Executivo. Não há, portanto, evidência mais cabal da completa ausência de independência e conflito de interesse.
6) Há algum tema que o senhor julgue muito importante, e que deveria ser acompanhado bem de perto pela população?
José Carneiro – Sim, há, e ele afeta a vida de muitos aqui em Brasília.
7) Qual seria?
José Carneiro – A regularização fundiária dos condomínios em áreas de propriedade do Governo, não só em relação ao bom fluxo e andamento dos processos, mas em especial no modelo e forma de determinação dos preços para a venda direta.
8) Mas a Terracap não possui um modelo já aprovado e testado para isso?
José Carneiro – Há muita crítica ao formato como a Terracap precifica seus lotes. Seja em um litígio judicial, ou na avaliação da Caixa para aprovação de um financiamento, todos, Terracap inclusa, seguem a NBR 14.653.
Essa norma é, inclusive, de uso compulsório(o entrevistado citou a resolução Cofeci 1.066/2007 e a Lei 6.3530/78, que normatiza a profissão de Corretor de Imóvel).
A questão é que não só a NBR tem problemas graves, como ela é genérica em relação à aplicação precisa dos métodos avaliativos.
A abordagem preferida é o chamado Método Comparativo Direto baseado em Regressão. Nesse caso, é evidente que o método econométrico (Regressão Linear, ou não) é o “carro chefe” da abordagem.
Em especial, a literatura técnica, muito consolidada, denomina essa abordagem como “Método dos Preços Hedônicos”, que busca decompor o valor de um imóvel com base em suas características. Dessa forma, outros imóveis, que não possuam preços precisos de mercado, podem ter seus valores estimados a partir dos parâmetros encontrados na abordagem de preços hedônicos.
9) E qual o problema que isso acarreta?
José Carneiro – É outra questão simples. Basta dizer que na aplicação usual desses modelos, onde alega-se a observância precisa da NBR, princípios básicos da metodologia são esquecidos, o que torna o preço encontrado não só inadequado, como completamente inconsistente. Em outras palavras, da forma como são usados, não é o método quem determina o preço, mas antes a opinião de alguém que, posteriormente, pode ajustar o método para confirmá-la.
10) Então cite exemplos de manipulação
José Carneiro – A mais comum é a escolha deliberada da amostra utilizada. Quando você pega um laudo de avaliação, é obrigatória a apresentação do número de observações utilizadas. Quando, para imóveis semelhantes, você percebe que esse número muda, há algo de errado.
Como funciona: se eu quero reduzir o preço de algo, para um mesmo modelo, me basta excluir as observações com preço mais alto. Por sua vez, se quiser aumentá-lo, basta excluir algumas observações com preço mais baixo.
Nesse caso, é fundamental que haja uma norma e um método claro de como a amostra é selecionada e que o banco de dados disponível esteja historicamente registrado. Assim, manipulações inadequadas nos preços podem ser auditadas pelos órgãos de controle e pela população. Sem isso, os números são apenas embromação fantasiada de técnica. Outra forma é se alterar a especificação do modelo, por meio de mudanças na equação utilizada para o cálculo. Isso é uma grave falha metodológica, mas cuja censura não está na NBR!
Um princípio básico de uma Regressão é a Correta Especificação do Modelo, que nada mais é do que a defesa de que os preços são formados pela relação matemática que você definiu. A implicação direta disso é que se você usa uma forma de equação para se precificar um lote, o mesmo formato precisa ser utilizado para a precificação de outro. Caso você mude muito o modelo, utilizando um em cada caso concreto, temos uma forte evidência que você desconhece a correta parametrização e, nesse caso, seus resultados são enviesados e inconsistentes. Em outras palavras, não servem para nada.
11) O senhor está dando uma aula de precisão…
José Carneiro – Mas precisa ser assim. Cito outro exemplo, e essa é uma falha grave que conta com a benção da NBR, é a avaliação da qualidade do modelo. A NBR apresenta uma tabela sobre o nível de precisão do modelo, onde se atribui pontos a cada característica da sua regressão e, com base nisso, você teria um nível de precisão maior ou menor.
A questão é que a tabela, apresentada nas páginas 22 e 23 da Norma, é completamente absurda.
Por exemplo, há uma regra matemática objetiva que diz que temos que ter mais observações do que parâmetros em um modelo. A necessidade disso é simples, se tiver menos observações, não terá como estimar o modelo. Isso é similar à necessidade de termos menos incógnitas que equações como aprendemos no Ensino Fundamental. A NBR traduz esse conceito no item 2 da tabela, onde tenta, conjuntamente, normatizar a ideia de “suficiente variabilidade dos dados”. Segundo ela, para que seu modelo ganhe, nesse tópico, nota equivalente a precisão máxima, você precisaria de 6 (k+1), onde k é o número de parâmetros a serem estimados.
Suponha um modelo com 3 parâmetros, onde o preço do lote seria explicado por: tamanho, localização e infraestrutura. Então, para que você ganhasse pontuação máxima, seriam necessárias 6(3+1) = 24 observações. Se tiver apenas dois parâmetros, o número cairá para apenas 18 observações.
Se pensarmos nas “regras de bolso” para que modelos tenham propriedades assintóticas, uma regressão baseada em observações independentes, o que muitas vezes não é o caso dos bancos de dados disponíveis, necessitaria de, ao menos, 30 observações. Para seu modelo ganhar pontuação mínima nesse quesito, bastaria ter: 3 (k+1) observações. Nos nossos exemplos, isso equivaleria a, respectivamente, 12 e 9 observações. É evidente que isso não cumpre, nem minimante, o conceito de suficiente variabilidade de dados.
Mas o pior ainda está por vir. Mesmo com apenas nove observações, você ainda poderá ter seu modelo classificado com a “nota de excelência”. Para isso, basta você “compensar” a amostra pequena pela adoção de um nível de significância de 10% para a rejeição da hipótese nula, conforme o item cinco da tabela. Porém, o tipo de problema causado por uma amostra pequena não é “compensado” por essa redução no nível de significância, e nem pela adoção da apresentação de fotos dos imóveis, como prevê o item 3 da mesma tabela. Ou seja, há, de fato, uma salada metodológica, que não tem como ser compatibilizada.
11) Mas a Norma é de todo ruim?
José Carneiro – De forma alguma. Ela possui diversos méritos. Em especial, quando busca padronizar os instrumentos de avaliação, de maneira que possa haver uma comparação objetiva entre diferentes laudos e opiniões. A própria Norma pede a observância da literatura aplica, mas ao criar compensações que são incompatíveis com o método utilizado, ela fere a sua própria natureza.
12) E por qual razão a população perde com isso?
José Carneiro – Por causa dessas falhas, a Terracap não consegue rever, de maneira objetiva e administrativamente consistente, os preços em muitos de seus lotes levados à leilão. O que termina por frustrar, em um cenário de desaquecimento do mercado, as receitas da própria empresa.
Sem uma base muito consistente, o diretor responsável pela área ficaria sujeito a críticas de estar “dando” o patrimônio da empresa, mesmo que isso não seja verdade. Por este motivo, acaba-se criando um equilíbrio torto no mercado, onde no lugar do valor dos ativos ser comparado do ponto de vista relativo, ele termina fixado em razão de uma “memória de preço”, formada quando o mercado estava excessivamente aquecido.
Ruim para o governo, que precisa de receita, pior para a população.
13) E a regularização, como fica?
José Carneiro – Esse caso é ainda pior. O conceito da venda direta depende da aceitação, por parte do morador, de um preço fixado pela empresa, com base em um modelo desses. Mas, nesse caso, há um claro desequilíbrio no debate. Enquanto a empresa apresta aos órgãos de controle algum modelo, baseado em alguma técnica até hoje pouco criticada pelo pelos órgãos de controle, os moradores têm apenas referências genéricas e, da forma como as coisas andam, o próprio governo teria dificuldades para promover um debate metodológico amplo e sério com moradores e órgãos de controle.
O sucesso da venda direta, que pode ser um importante equacionador das questões financeiras do governo, passa pela definição de um preço que os atuais ocupantes possam pagar. Encontrar esse valor depende de um amadurecimento metodológico ainda inexistente, em que pese o uso dessas ferramentas ser tão antigo.
Acredito que aqueles que têm interesse em um debate profundo sobre os preços, devem desenvolver de forma independente e muito bem fundamentada na literatura técnica, um modelo proprietário, capaz de ser escrutinado e debatido abertamente. Infelizmente esse não é o caso daquilo que está, atualmente, posto na mesa, para o infortúnio da população e do próprio governo.
14) No geral, como foi sua experiência no governo?
José Carneiro – Muito boa; ao menos não foi traumática (risos). Ainda há, infelizmente, uma preponderância da vontade política sobre a convicção técnica. É obvio que política é importante, mas em determinadas questões a opinião técnica deve ser incorporada ao posicionamento política, não o contrário.
Dizer apenas aquilo que o governador quer, ou o secretário, não é zelar pelos interesses deles. A convicção técnica deve poder ser escrutinada e justificada, jamais sendo rejeita pelo achismo da comodidade de momento, isso só resulta em prejuízo para a população e para o governo. Acredito que no Brasil de hoje, não há mais espaço para que sejam produzidos trabalhos que se fingem de técnicos, para justificar a vontade daquele que tem o poder do momento em relação à manutenção do dito especialista em um cargo do governo. A pior corrupção é a incompetência!
Pela lei, e pelo espírito republicano, quem age assim deve responder por seus atos, e por aquilo que escreve. Ou seja, se o político decide com base em um documento que se propõe técnico, mas busca, por vezes de maneira absurda, apenas justificar uma ação já pretendida, tanto o político, quanto o que se diz técnico e lavra a opinião, devem responder por isso.
Quando esse tipo de esforço evolui até mesmo para a produção de documentos cujo processo escorrega na normalidade jurídica, temos um caso ainda mais grave. É nesses momentos que servidores estáveis e concursados devem atuar de maneira mais dura; é quando eles se tornam ainda mais importantes para o sucesso do país.
Mas, apesar dessas dificuldades, ainda gostaria de contribuir, naquilo que posso, para que tenhamos governos e políticas bem-sucedidas. Até lá, sigo ali(e aponta o dedo em direção à UnB, bem próxima), com meu público cativo de estudantes, onde semeamos o futuro do Distrito Federal.
15) Como o senhor avalia essa mudança no comando da Terracap?
José Carneiro – O Júlio (Júlio César, citado na abertura da entrevista) é um técnico muito bom. Tive o prazer de conhecê-lo durante o governo de transição e, com certeza, é um dos maiores, se não o maior, especialista em questões fundiárias da atualidade.
Espero que ele consiga destravar o processo de regularização de imóveis rurais, que perdeu muito de seu folego desde o afastamento do Diretor Moises Marques, fato que deveria preocupar não só o atual Conselho Fiscal, mas também o TCDF e o MPDFT.
Ali temos uma diretoria com prazo de existência, se o volume de regularização é baixo, há motivo mais do que suficiente, em nome da austeridade, e a empresa precisa muito disso, para sua transformação em Gerência da Diretoria Técnica. Obviamente, jamais se poderia utilizar o ritmo limitado de operação como argumento para a perpetuação definitiva da unidade, o que fere qualquer lógica razoável.
No mesmo sentido, há o desafio da retomada do nível de vendas, onde ele enfrenta dois desafios. O enorme estoque de terras em posse das construtoras, o que implica em baixa venda de lotes novos, e as dificuldades inerentes aos ajustes adequados dos preços de lance inicial dos lotes novos, já debatidas nesta conversa.
Acredito que a questão do reequilíbrio financeiro será central na gestão dele, mas tenho certeza de que sob o comando do Júlio, a empresa será reerguida financeiramente.
Sobre o Navarro, na convivência que tive com ele, vi um profissional bem preparado, muito preocupado com o seu trabalho e com o governador Rodrigo Rollemberg. Acredito mesmo que tenha tido uma boa passagem pela empresa e que tenha deixado um legado respeitável. Se confirmada sua ida para o BRB Ativos, por certo fará uma boa gestão.
*Colaborou José Seabra