Quando se fala sobre uma figura que viveu há 2 mil anos, é natural que seja difícil comprovar fatos elementares de sua biografia. Se esta pessoa tinha uma vida simples e morava em uma região pobre, as chances de registros oficiais preservados caem consideravelmente.
Se o personagem acabou se tornando um dos elementos básicos de uma religião — no caso, o cristianismo — é altamente provável que lendas se somem às verdades, e tudo isso ajude a compor não mais uma biografia, mas uma hagiografia.
Por isso que São José, o homem de Nazaré que teria sido marido de Maria, mãe de Jesus, tem sua história recheada de controvérsias. Teria ele realmente sido carpinteiro? Era mesmo um senhor idoso quando se casou com a jovem Maria?
“Tudo o que sabemos a respeito de José se baseia em três tipos de fontes: os evangelhos que falam dele, o material que chamamos de [textos] apócrifos e a tradição”, explica o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Juntando tudo isso temos alguma informação a respeito da pessoa de José.”
Ele constata, entretanto, que se trata de uma pessoa “bastante controvertida”, já que mesmo os textos canônicos — aqueles relatos que integram a bíblia contemporânea — apresentam algumas discrepâncias nas poucas informações a respeito da figura paterna humana da criação de Jesus.
“Na bíblia ele é sempre apresentado como um homem justo, essa é a expressão recorrente”, diz o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma.
De acordo com as escrituras, Maria era uma moça virgem prometida em casamento a ele. Quando ele percebe que Maria estava grávida, conclui que é de outro homem e, para não expô-la para a sociedade, planeja deixá-la em segredo.
“Em sonho, e isso é uma característica forte de São José, o anjo explica a ele que Maria está grávida do Espírito Santo. Ele aceita essa situação e, consequentemente, aceita o papel de pai adotivo de Jesus”, contextualiza Domingues.
O vaticanista explica que essa construção da imagem de José é a tônica: de um homem forte, que em sonho ouvia a voz de Deus.
“E ele não fala, não tem fala de José na bíblia, mas apenas fala sobre ele. Portanto, pode ser considerado um homem silencioso, sereno, introspectivo”, analisa.
“Era uma pessoa de ouvir e agir, de ação.”
Doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estudioso de narrativas e documentos sobre santos Thiago Maerki pontua que “sabemos pouco sobre São José porque os evangelhos oficiais nos apresentam poucos momentos da vida dele”.
“José viveu em Nazaré, na Galileia. Os evangelhos se referem a ele aclamando-o como ‘homem justo’ escolhido por Deus para ser o pai amoroso de seu filho Jesus, ao casar-se com Maria”, resume o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.
“José passou pela provação da gravidez de Maria, de quem ele era noivo, mas não era o pai do filho dela”, pontua Lira.
Saúde e todos os dentes
Se faltam palavras a respeito de José nos chamados textos canônicos, há informações importantes que pesquisadores coletaram nos chamados textos apócrifos, relatos sobre o período de Jesus que foram redigidos nos primeiros séculos da era comum e acabaram não sendo reconhecidos como basilares do cristianismo.
O mais completo e importante desses relatos é o texto chamado de História de José, o Carpinteiro, possivelmente escrito entre os séculos 6 e 7.
Ali, esse trabalhador nazareno é apresentado como uma figura mais velha, um homem viúvo já pai de algumas crianças.
Maria, ainda menina, é encarregada de ajudá-lo a cuidar dos filhos. Nesse sentido, quando ela atingisse a idade de 14 anos e meio, eles deveriam se casar.
E é nesse contexto que Maria engravida de Jesus e toda a narrativa cristã se principia.
Um dos aspectos mais curiosos desse texto é que, nele, a morte de José é descrita — quando ele tinha impressionantes 111 anos.
“E o texto ressalta que ele tinha uma ótima saúde, com todos os dentes intactos e tendo trabalhado até seu último dia de vida, o que mostra certo vigor apesar da idade avançada”, pontua Maerki.
Sobre a morte, aliás, o relato apócrifo recupera essa ideia de um homem que era sempre avisado e orientado pela voz divina.
“Ele teria sido avisado por um anjo da morte”, diz o pesquisador.
“Muito provavelmente isso não tem nenhum fundamento”, admite Moraes.
“Mas ajuda a consolidar uma série de coisas. É um texto de pelo menos 1,4 mil anos sobre uma figura controvertida, que é José, sobre quem os evangelhos não dizem muito. Pela tradição, até para preservar o dogma da virgindade de Maria, faz sentido montar a cena de uma jovenzinha com um sujeito muito mais velho.”
“A última vez que a bíblia fala a respeito de São José é no episódio do encontro de Jesus no templo, quando ele tinha 12 anos de idade”, assinala Lira.
“Quando Jesus inicia sua vida pública, com mais de 30 anos, não se fala mais em José. Numa das pregações de Jesus anunciam que sua mãe ali estava, mas não José. E no momento da crucificação fica claro que Maria era viúva e Jesus a confia a João, evangelista, que dela cuidou daquele dia em diante.”
“Isto posto, não se pode afirmar quando ele morreu”, conclui o hagiólogo.
Para Lira, “a fonte mais segura” sobre a biografia de José é o pouco que está escrito nos evangelhos.
“Existem outras fontes como os apócrifos, com destaque para a História de José, o Carpinteiro, escrito em copta entre os séculos 6 e 7”, lembra.
O pesquisador, contudo, acredita que o documento seja um relato de “duvidosa veracidade”, enfatizando que a “própria língua copta surgiu no Egito no século 3, muito depois, portanto, da passagem de José na Terra”.
“Eu diria que [o livro apócrifo] é um romance. Muitos foram os escritos de santos, teólogos, historiadores, mas nenhuma fonte é mais segura do que os evangelhos”, analisa.
Profissão
Dentro da construção de José no imaginário contemporâneo, um elemento que se faz presente é o aspecto profissional. José era o carpinteiro.
Jesus era o filho do carpinteiro. José era o trabalhador dedicado e Jesus teria aprendido o ofício com o pai, tendo-o praticado até o início de sua missão evangelizadora.
Essa narrativa parte dos textos bíblicos, a partir das traduções consolidadas, e é carregada de elementos da tradição.
Moraes observa que o termo utilizado para descrever José nos textos gregos antigos, contudo, não deixam claro o ofício exato praticado por ele.
“É uma palavra meio genérica, no mundo antigo, para significar artesão ou qualquer profissão de trabalho braçal. O que ele fazia especificamente é muito difícil dizer”, comenta o professor.
“A tradição optou por chamá-lo de carpinteiro. Pode ter sido? Pode, mas pode ter sido qualquer trabalhador braçal. Era um fabricante, um artesão, um técnico que fazia alguma coisa. Tanto que depois sua imagem fica vinculada ao trabalho, sendo ele reconhecido como patrono dos trabalhadores na tradição católica”, completa ele.
“[O termo carpinteiro] é da tradução. O que a gente sabe é que ele fazia trabalhos manuais”, contextualiza Domingues.
“Aí há a discussão: se ele tinha um negócio próprio, então eles não eram tão pobres assim. É, pode ser que não. Mas, por outro lado, eram de Nazaré. Que era e até hoje é uma cidade marginalizada, não era o centro da história toda.”
Um homem mais velho
Domingues conta que são tradições cristãs orientais, como a Igreja Ortodoxa, que consolidaram a ideia de que José já era viúvo quando se casou com Maria.
“A Igreja Ortodoxa aceita que ele tenha tido um casamento antes. Porque, de fato, seria muito estranho um homem mais velho ainda não ter se casado. Por essa narrativa, ele teria tido filhos antes e, nesse sentido, Jesus poderia ter irmãos, mantendo a virgindade de Maria”, afirma.
O vaticanista ressalta, contudo, que para a Igreja Católica a narrativa é “simplesmente que José se casou com Maria” sem nada, nos textos, que diga “que ele era um homem velho”.
“Criou-se uma tradição. Por muitos anos ele foi apresentado como um homem mais velho. Talvez pela sabedoria, por conseguir ouvir a voz do espírito, por ser uma pessoa tranquila que já viveu muito da vida.”
“Não há nada explícito nesse sentido, mas uma tradição que se criou. Na época era normal que o homem fosse um pouco mais velho, mas essa visão de que ele era muito mais velho, enfim, faz parte de todas essas lendas e tradições posteriores. Que, importante dizer: não mudam a essência do que José representa para a Igreja”, comenta Domingues.
Lira concorda que não exista, “concretamente, qualquer registro da idade de José ou de Maria, pelo menos biblicamente falando”.
“Uma comparação é feita pela idade em que comumente se considera que as pessoas casavam naquela época, mas não é uma regra absoluta, por isso não considero tais idades”, argumenta.
“Essa ‘velhice’ de José se propagou, principalmente, para mostrar que ele teria respeitado a virgindade de Maria. Mas, eu, particularmente, creio que tudo foi obra do Espírito Santo, e José poderia ser jovem ou velho e mesmo assim respeitaria e honraria a missão que lhe foi confiada de cuidar da mãe do filho de Deus e do próprio filho de Deus, a quem ele, José, deu nome: Jesus”, afirma o hagiólogo.
Maerki credita à tradição essa construção da imagem de José como um ancião.
“É uma ideia baseada nos livros apócrifos como uma tentativa de mostrar que José, por ser idoso, não teria de fato tido relações sexuais com Maria e não era o pai carnal de Jesus. Foi uma construção ideológica dos evangelhos apócrifos”, defende ele.
“Essa concepção acabou muito difundida pela arte religiosa, pela escultura, pelo teatro, pela pintura. E se propagou. Enraizou-se no cristianismo por meio da arte e acabou defendida por grandes teólogos expoentes do cristianismo”, explica Maerki.
Quando a questão esbarra na questão de um casamento celibatário ou não, contudo, o dogma católico da virgindade perpétua de Maria acaba sendo um entrave a mais para qualquer discussão.
Na própria bíblia há passagens mencionando irmãos de Jesus. Várias leituras são feitas, conforme o viés interpretativo e conforme a denominação religiosa de quem promove tal interpretação.
O catolicismo, que defende Jesus como filho único, entende a questão como reflexão de tradução, defendendo que em idiomas orientais antigos seria a mesma palavra para designar irmão e primo, por exemplo.
“A origem dessa polêmica pode ser uma questão de tradução da bíblia a partir dos idiomas primitivos”, ressalta Maerki.
“No aramaico [falado por Jesus] não havia uma palavra específica para designar primos, isso é comprovado.”
Há ainda a ideia, aceita por vertentes protestantes, de Maria tendo outros filhos com José depois do nascimento de Jesus.
“O protestante não tem nenhum problema com o fato de ela ter continuado com sua vida”, afirma Moraes.
“O protestante acredita que Jesus é filho do Espírito Santo, que foi gerado nela como obra do Espírito Santo e que José não participa desse processo. Mas, depois de nascido Jesus, ela continuou a sua vida conjugal com seu esposo e, juntos, tiveram filhos e filhas sem nenhum problema”, explica.
“Para os católicos, a coisa não é assim porque existe o dogma da virgindade de Maria, como uma mulher que nunca foi tocada por homem algum, manteve-se virgem mesmo vivendo com José.”
Em meio a tantas controvérsias, uma passagem do evangelho de João suscita uma outra polêmica.
“É quando, no capítulo 8, a questão da paternidade de Jesus é trazida à tona, com judeus dizendo para Jesus: ‘Não somos bastardos, temos um pai que é Deus'”, diz o teólogo.
“Alguns intérpretes entendem algo como ‘não somos bastardos, enquanto você, Jesus, é’.”
“Ou seja, por essa leitura, Jesus teria sido filho de prostituição e a mãe dele saiu com essa conversa de que tinha sido gerado pelo Espírito Santo. Pode significar que, na virada do primeiro século [quando o evangelho de João teria sido escrito], o judaísmo já não engolia isso [de Jesus como filho de Deus]”, afirma ele.
“São interpretações polêmicas que também mostram conflitos a respeito da paternidade de Jesus”, completa.
“José é uma figura extremamente controvertida.”
Mensagem
O vaticanista Filipe Domingues ressalta que a importância da hagiografia de José se baseia na mensagem.
“Jesus nasceu em um contexto de família. Ele tinha um pai, uma mãe e foi criada por uma família com um modelo de masculinidade presente”, diz.
“Na época, isso significava que ele teve alguém que lhe ensinou uma profissão e o amparo de um pai protetor”, pontua ele.
“A ideia de que Deus se encarnou como menino e nasceu no seio de uma família é muito importante.”
Domingues ressalta que essa imagem incorpora então as características de José como “homem justo”, “modelo de pai”, “homem que protege”, “homem que ensina”.
Acabou se tornando um modelo cristão de paternidade.
“Não à toa, aqui na Itália o Dia dos Pais é o dia de São José [19 de março]”, afirma ele.
“Tornou-se o modelo masculino de santidade, conforme a tradição do catolicismo.”
Sua figura passou a ser venerada como a de um santo deste os cristãos primitivos.
“No século 9º, essa devoção propriamente dita se incrementou”, explica o hagiólogo Lira.
A data comemorativa, 19 de março, foi oficializada apenas em 1621, sob o papa Gregório 15 [(1554-1623)].
“Papa Pio 9º (1792-1878) proclamou-o ‘patrono universal da Igreja’. E, ao longo da história, cada vez mais se teve adeptos à sua devoção”, comenta Lira.