Jovens hoje, velhinhos amanhã, brincam de brincar de Bozo

Eu costumava rir dos louquinhos que fazem serenata pra pneu e alisam parede de quartel, mas aí me lembrei de uma passagem do filme “A guerra acabou”, do francês Alain Resnais. Um revolucionário espanhol comenta com outro sobre o filho deste, já adulto, algo como “Faz tempo que ele chegou da Espanha”? O pai responde, “Nunca esteve lá, nasceu aqui na França, no exílio”. Então criei este conto.
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O velho avança, com passos trôpegos, em direção à entrada do quartel. Veste algo que já foi uma camisa amarela, mas que hoje não passa de um trapo rasgado e encardido. Bate debilmente no portão de ferro e começa a chorar. Dois outros idosos observam a cena.

– Ele é um herói, o último remanescente dos patriotas que protestaram contra a eleição fraudada de 2022 – apontou o idoso 1, que vestia uma camiseta da CBF imunda, mas ainda reconhecível. – Todos os outros morreram ou foram cuidar da vida. Ele não, continua firme. Mas era melhor que tivesse partido ao encontro do mito no céu. Não tá nada bem da cabeça. Depois de bater no portão, ou ele chora, que nem hoje, ou começa a xingar, “militares de bosta! Por que não dão um golpe? Desperdicei minha vida aqui, implorando por isso, e vocês, seu bando de comunas, não fizeram nada! Vão buscar o homem e o coloquem de volta no poder”!

– Ele sabe que o mito morreu faz tempo? – indagou o idoso 2, que vestia uma camisa canarinho apenas suja.

– Já falamos, mas ele não acredita – deu uma guinada na conversa. – A propósito, patriota, meu nome é Jurandir. Estou protestando aqui faz tempo, desde a eleição fraudada do dr. Eduardo.

– O bananinha? Em 2030?

– O dr. Eduardo – falou secamente o idoso 1, que não gostou nada da falta de respeito com o seu líder.

– E o amigo?

– Meu nome é Francisco, estou aqui desde 2038, vim protestar contra a fraude eleitoral que derrotou o dr. Carlos.

– O Carluxo? – indagou com um meio sorriso o idoso 1, devolvendo a falta de respeito.

– O dr Carlos. Mas a verdade é que estamos velhos, e as derrotas posteriores mobilizaram pouquíssimos homens de bem.

– Em 2042 não houve fraude, o 01 perdeu mesmo. A comprovação das rachadinhas tirou ele do páreo.
O idoso 2 assentiu em silêncio.

– Em 2046 também não deu pra saída, o vídeo do 04 se drogando acabou com as chances dos conservadores – Jurandir tomou fôlego e continuou:

– Vamos ver se a 05 é boa de voto. Não tem mais ninguém…

– A filha? A fraquejada?

– Sim.

– Não sei não, Jurandir. E ultimamente tenho pensado que estamos estragando nossa vida a troco de nada. A verdade é que nem penso mais nele pelo nome, nem como mito, na minha cabeça vem Bozo…

– Traidor! Melancia!! Você quer que o Brasil vire comunista!!!

– Como comunista, Jurandir? Não virou em 30 anos, vai virar agora?

Nesse momento, um grito vindo do portão do quartel chamou a atenção dos dois. O veterano de 2022 acabara de cair por terra, com um enfarte fulminante. Francisco olhou sério para Jurandir e comentou:

– Acho que você agora é o mais velho de nós, né não? Como é, vamos continuar aqui, perdendo patriotas a cada dia, ou vai propor que todos voltem pra suas famílias e, se quiserem, façam política nos partidos conservadores?

Jurandir ficou em silêncio por algum tempo, coçou a cabeça, e afinal falou:

– Nada de debandar. Vamos continuar a pedir um golpe militar. E seguir o exemplo dos patriotas gaúchos, que dirigiram luzes para o céu pedindo a intervenção dos ETs. Quem sabe agora dá certo?

E se afastou andando lentamente, com dificuldade, que estava velho, velhinho, de marré, marré, marré.