Luiz Carlos Merten
Mais do que a França, que sempre apoiou seu cinema e virou um enclave de resistência a Hollywood, a Coreia do Sul talvez seja o único país no mundo em que os filmes nacionais impõem pesadas derrotas aos blockbusters estrangeiros – leia-se, dos EUA. Batman vs. Superman, Avengers, Guardiões da Galáxia? Não são páreos para o cinema de gênero local. De gêneros, sim, porque essa foi uma coisa que o cinema sul-coreano importou.
Policiais, fantasias científicas, terror, mas sempre impregnados dos elementos da cultura nacional. Invasão Zumbi tem sido um fenômeno internacional. Em toda parte, o longa de Yeon Sang-ho tem arrebatado o público – e a crítica. No Brasil, não tem sido diferente.
Embora sua estreia oficial seja nesta quinta, 29 – a última do ano -, o filme esteve em pré-estreia ao longo da última semana. O público, principalmente jovem, lotou as salas e era interessante, tanto quanto ver o filme, observar as reações da plateia. Porque, e essa é outra forte característica do cinema sul-coreano, Invasão Zumbi usa o fantástico, mais até que o terror, para contar histórias de família.
O filme é violento, intenso, mas, ao contrário das produção do gênero de Hollywood, não se alicerça sobre o conceito do susto. De cara, Sang-ho propõe um estranhamento. Na abertura, um boneco inflável, imitando gestos humanos, desvia um carro na estrada e, imediatamente há um acidente com um cervo. Morto, o bicho retorna como zumbi e encara a plateia.
Na cena seguinte, a história já é de família. O pai que só pensa na carreira e não tem tempo para a filha é forçado a acompanhar a garota, levando-a ao encontro da mãe. Coisas estranhas estão ocorrendo pelo país – levantes em toda parte. Pai e filha embarcam no trem. Last Train to Busan, O último trem para Busan. É o título internacional de Invasão Zumbi.
Tem um significado ao mesmo tempo real e simbólico. No país que sofre o ataque dos zumbis, é o último trem para Busan, área militarizada que se transforma no único reduto seguro. E é a última viagem para muita gente, quase todo mundo que embarcou. No fim, poucos, bem poucos chegam ao seu destino.
Vem de longe, na história do cinema, o fascínio pelos mortos-vivos. Vampiros, com seu sangue gelado, não deixam de ser uma categoria específica, mas, no começo dos anos 1940, o lendário produtor Val Lewton, em seu ciclo de terror, já contava histórias de zumbis. A Morta-Viva, o clássico de Jacques Tourneur. Pelos anos e décadas seguintes, mortos-vivos assombraram o imaginário do público até que, no mítico 1968, George A.
Romero fez A Noite dos Mortos-Vivos. Depois disso, e a cada cinco ou dez anos, Romero voltou ao tema dos ressuscitados para contar uma história dos EUA. Conflitos raciais, violência contra as mulheres, os imigrantes, tudo ele abordou. Tratado com realismo, quase um neorrealismo, o terror virou político e chegou em 2004 a Dawn of the Dead (Madrugada dos Mortos), de Zack Snyder, o último grande filme hollywoodiano do gênero, com seus zumbis que sitiam um grupo num shopping – o consumismo em questão.
Os mortos-vivos migraram para a TV (Walking Dead), voltaram ao cinema (Guerra Mundial Z, de David Ayer). Sabemos de onde vem esse fascínio pelos ressuscitados. Um pouco mais difícil é entender o que ele representa. Mortos sedentos de sangue, que se alimentam de cérebros no paródico – A Volta dos Mortos-Vivos, de Dan O’Bannon. Medo de quê? Da alienação? O trem de Sang-ho abarca toda a sociedade da Coreia do Sul. Os personagens viram representações sociais. Existem diferentes tipos de pais, de representações simbólicas da classe dominante. E existe uma imensa massa de manobra, que reage de maneira egoísta e, por isso, está condenada.
O estranhamento último de Invasão Zumbi consiste em fazer o que nenhuma produção de Hollywood ousaria. No limite, o que Sang-ho conta são histórias de família. Há um personagem que concentra os defeitos de um comportamento típico da economia neoliberal. Dane-se a solidariedade, o grupo, é cada um por si. Bem no fim, há uma revelação que humaniza essa figura. O terror vira melodrama, de volta ao binômio pai/filha.
A chave está na canção que a garota, finalmente, vai cantar. É tão inesperado (disparatado?) que a plateia ri. Ridículo ou nervosismo? Talvez Invasão Zumbi não seja tão grande quanto o Zack Snyder, ou os melhores filmes de Romero, mas é muito bom? Uma (r)evolução do gênero? Boa parte do relato contrapõe gêneros humanos – a garota, a grávida, as idosas. Os jovens estudantes, o vagabundo, dois tipos de pais. A raridade é isso – um filme de terror, de zumbis, para refletir.