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O golem

Judias-umbandistas aprontam todas e ferram com o rabino

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Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Chain Loew não era um bom judeu. Na verdade, não era um bom ser humano. Dos 10 mandamentos da chamada civilização judaico-cristã, só livrou a cara do 5º, Não matar. Tampouco havia batido a carteira de alguém (7º mandamento, Não furtar), mas ele era empresário e, a seus olhos, enrolar um otário para levar vantagem nos negócios não era tecnicamente um furto. Dedicava-se com especial entusiasmo à transgressão do 9º mandamento. Desejar a mulher do próximo era praticamente inevitável, quando se trabalhava na montagem de feiras internacionais e se vivia cercado de mulheres atraentes. Todas esposas, filhas e, em casos inesquecíveis, mães do próximo – que nessas ocasiões, por sorte, não estava próximo.

Quanto aos 613 mandamentos da lei mosaica, expressos na Torá e no Talmud, a goleada era avassaladora: ele perdia por 612 a 1. Jamais recusou, por exemplo, um sanduíche de pernil de porco e adorava camarão, dois animais impuros (mas, reconheça-se, deliciosos). Por vezes, traçava um rango em pleno Yom Kippur, o Dia do Perdão, de jejum obrigatório. O pior é que essa ovelha negra da tribo de Judá descendia de uma ilustre linhagem de rabinos da Europa Central e Oriental.

No século XIX, depois de sobreviver, a duras penas, a perseguições na Polônia e na Rússia, todo o clã Loew emigrou para a América, fixando-se na Argentina (a maioria) e no Brasil. Os da Argentina ainda mantiveram o respeito a algumas tradições, mas o ramo de Chain Loew mergulhou docemente na geleia geral brasileira, com muito azeite de dendê na moqueca de camarão.

A multiplicação das feiras no exterior levou Chain Loew à Europa. Ele sediou seus negócios em Praga, onde haviam vivido diversos ancestrais seus, todos rabinos ilustres. E foi ali que morreu, aos 70 anos, de um ataque cardíaco.

Quando suas filhas, Ruth e Sara, chegaram do Brasil, o corpo já havia sido cremado. Fora decisão de Alena, sua quarta ex-mulher, uma tcheca 30 anos mais nova do que ele, ateia de carteirinha.

As irmãs ficaram na casa de Alena. À noite, as três ouviram passos pesados na sala vazia. Na noite seguinte, quando ouviram uma voz bem conhecida reclamar em português castiço “Ruth, já montou a merda da exposição?”, não puderam mais ignorar que Chain estava por ali, morto mas boca-suja como em seus melhores dias.

– 0 jeito é fazer um descarrego – declarou Sara, que era chegada em umbanda. – Ele era filho de Exu, basta lembrar de sua cara de sem-vergonha. Tem de fazer uma oferenda a Exu para papai ir pra outro plano.

Ruth ficou escandalizada.

– Sara, somos judias! Descarrego não existe em nossa religião!

– E daí? – respondeu a irmã. – Vamos deixar o encosto com Alena ou, pior, levá-lo conosco para o Brasil? Quanto a mim, sou judia-umbandista, e lembro que você também frequentava um terreiro de vez em quando – completou a geleiageralizada.

– Não há terreiros de umbanda em Praga – informou Alena em inglês (a língua em que se comunicavam), cortando a discussão.

Se não havia, não havia, e as três, depois de muita discussão, decidiram fazer uma discreta oferenda a Exu – apesar dos protestos de Sara, que queria um despacho de responsa – e depositar o encosto em uma sinagoga, de onde ele subiria para o plano astral. O despacho foi feito em uma encruzilhada do bairro Josef, o antigo gueto de Praga. Os ingredientes do padê foram sugeridos por Sara, que entendia dessas coisas. Entre outros itens, o mensageiro dos orixás recebeu cachaça, azeite de dendê (trazidos do Brasil), três charutos (cubanos, da melhor qualidade, a Tchecoslováquia socialista mantinha boas relações com Cuba socialista e Exu/Chain mereciam), velas e três ovos cozidos. Não havia carne; Alena, que era vegetariana, não permitiu, apesar das lamúrias de Sara.

Na manhã do dia seguinte, as três foram garantir a ascensão de Chain – no mínimo, descarregar o encosto – em um templo do bairro judeu, que ficava bem perto da encruzilhada do despacho. Tinha um nome encantador, Sinagoga Velha Nova; a obra terminara em 1270, o que fazia dela uma das mais antigas edificações góticas da Tchecoslováquia – e também a mais antiga sinagoga da Europa ainda em atividade. Com seus arcos e abóbodas, parecia uma catedral de Notre Dame em miniatura. Ao surgir, foi chamada de – adivinhem! – Sinagoga Nova porque havia no gueto uma ainda mais antiga, compreensivelmente chamada de Sinagoga Velha, que desapareceu no século XIX; mas, a essa altura, havia muitos séculos que a Nova era chamada de Velha Nova. Veillesse oblige.

Ruth e Sara foram falar com o rabino, utilizando a ateia Alena como intérprete. As palavras dele foram um banho de água fria.

– Por 200 dólares, pagamento adiantado, posso rezar pela alma dele, mas é claro que não posso garantir que ele vá para um plano superior.

Ninguém pode, porém mal não faz. Agora, por 50 dólares, eu rezo a mesma oração e ele sobe – ou não. Só que vai em bando, na companhia das almas de outros judeus falecidos.

Um pouco aturdidas com a postura agnóstico-teísta do rabino, as três preferiram o bonde das alminhas, pelo menos era mais barato. Enquanto o religioso lia com voz monótona os nomes de uns 50 judeus que ascenderiam – ou não – juntos, Sara afastou-se, tendo nas mãos a urna com as cinzas do pai, e parou diante de um trecho do assoalho que parecia coberto de barro.

Além de ser judia-umbandista, Sara curtia Pacha Mama, a Mãe Terra, divindade máxima dos indígenas andinos. Rituais religiosos, para ela, deveriam se realizar ao ar livre, com os pés descalços no chão poeirento. “Não tem chão poeirento mas tem barro, já quebra o galho”, pensou. Tirou os sapatos e, dando as costas ao rabino, despejou as cinzas de Chain Loew sobre o barro.

E aí deu chabu.

As cinzas e o barro começaram a se agitar, dando origem a dois vultos vagamente humanos. Das cinzas formou-se uma figura que lembrava Chain, mas com uma expressão de pavor no rosto. O barro, por sua vez, configurou um gigante que abraçava Chain com um olhar de veneração.

O visível medo de Chain, e sua identidade, foram confirmadas por um berro em bom português: “Socorro! Me livrem desse corno!”

Se o gigante de barro não entendeu as palavras, compreendeu perfeitamente a rejeição contida nelas. Consternado, afastou-se um pouco de Chain, que deu um pulo para cima, subiu com tudo e desapareceu em meio às abóbadas da sinagoga gótica. Quanto ao gigante, ajoelhou-se no barro e aos poucos se desfez.

Por sorte, naquele momento no interior da Velha Nova só estavam Sara, Ruth, Alena e o rabino. Este murmurou alguns palavrões em tcheco e falou:

– Vocês destruíram o golem de Praga, é uma perda cultural irreparável. Vão ter de pagar uns 500 dólares! No mínimo 300.

– Golem? – perguntaram as três.

Mais calmo depois de constatar, decepcionado, que as mulheres não tinham um tostão, e de se consolar com o fato de o monstro ter se desfeito sobre o barro, o que deixava intocada a matéria-prima original (apenas com um pouquinho de cinza por cima), o rabino explicou que o termo golem deriva de uma palavra hebraica que significa justamente matéria-prima. – A Torá refere-se a Adão, antes de Deus soprar-lhe a vida, chamando-o de golem – acrescentou.

Explicou em seguida que, ao longo dos séculos, rabinos haviam criado golens de barro, muitas vezes para defender os judeus.

– Foi o que aconteceu aqui – disse com orgulho. – O inesquecível rabino Judah Loew criou um golem na Sinagoga Velha Nova para defender os judeus contra um ataque antissemita que…

– Como era o nome dele? – interrompeu Ruth.

Ele repetiu, Ruth e Sara se entreolharam, e contaram ao rabino que eram descendentes em linha direta de Judah Loew.

– Papai devia ter a mesma vibração de Judah Loew – declarou Sara, judia-umbandista-pachamamista-novaerista.

– Nada de vibrações, o golem constatou que o DNA de Judah e o de Chain se assemelhavam – contestou a materialista Alena.

Depois dessas explicações, o rabino colocou rudemente as três mulheres para fora da sinagoga, xingando-as em hebraico e tcheco. Mal colocaram os pés na rua, as brasileirinhas devolveram as ofensas, gritando em conjunto, no melhor estilo de torcida organizada tupiniquim furiosa com o juiz:

– Ei, rabino, vai tomar no c…!

– Oh yeah! – complementou Alena em inglês, solidária com as ex-enteadas.

E acrescentou uma enxurrada de palavrões em tcheco.

E, do plano superior, o recém-chegado Chain Loew apoiou as três, xingando o pobre rabino nas muitas línguas que conhecia.

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