Rondônia
Juiz arrenda terra para engorda de gado em área invadida
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emO magistrado do Tribunal de Justiça de Rondônia Hedy Carlos Soares, preso na semana passada em operação do Ministério Público do estado, se descrevia no Instagram como um homem polivalente. Juiz, professor, palestrante, escritor, motociclista, cidadão do mundo, investidor e… pecuarista.
Foi a relação com essa última atividade que o levou a ser alvo, em 2019, de um processo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por suspeita de favorecimento a um fazendeiro descrito pela Procuradoria Ambiental de Rondônia em ação judicial como um dos maiores “invasores e degradadores” do Parque Estadual Guajará-Mirim, em Nova Mamoré, a 280 km de Porto Velho.
Conhecido pelo apelido de “Baiano”, o fazendeiro Erivan da Silva Teixeira já foi multado diversas vezes pela Secretaria do Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) por desmatar ilegalmente e dificultar ações de fiscalização no local.
O CNJ arquivou o processo ainda em 2019 por entender, com base em informações fornecidas pela Corregedoria do TJRO, que não havia vínculo pessoal entre o juiz e Baiano. Portanto, Soares não teria agido com parcialidade ao decidir a favor do fazendeiro em março de 2018, quando concedeu a ele liminar para manutenção de posse de uma propriedade limítrofe ao parque, que à época era alvo de ações de fiscalização constantes da Sedam e a partir da qual Baiano invadia a unidade de conservação.
Mas a Agência Pública encontrou documento da Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron) indicando que Soares mantinha acordo de arrendamento de pasto para criação de gado na mesma fazenda de Baiano já em janeiro de 2018 — ou seja, antes da decisão que motivou a abertura do processo.
O Parque Estadual Guajará-Mirim tem sofrido um aumento das invasões nos últimos anos, segundo o Ministério Público de Rondônia, e sido palco de atentados a fiscais da Sedam e a policiais militares — em dezembro do ano passado, um servidor da Sedam chegou a ser baleado durante uma ação.
A unidade de conservação — que integra um corredor ecológico e faz divisa com as Terras Indígenas Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau e Igarapé Lage — teve sua área reduzida em 22% por uma lei proposta pelo governador Marcos Rocha (União Brasil) e aprovada a toque de caixa pela Assembleia Legislativa do estado em maio do ano passado. Meses depois, em novembro, a Justiça a considerou inconstitucional e anulou sua validade, mas as invasões persistem e operações de fiscalização continuam sendo feitas para combatê-las.
No feriado de 7 de setembro de 2018, policiais militares flagraram Hedy Carlos Soares saindo da fazenda Cantão, de Baiano, em sua caminhonete Hilux. Apenas 17 dias antes, em 21 de agosto, ele havia decidido a favor do fazendeiro, mantendo uma liminar concedida inicialmente em março para manutenção de sua posse sobre a mesma propriedade, cujos fundos fazem divisa com o Parque Estadual Guajará-Mirim, e para que a Sedam fosse impedida de cometer ali novas “turbações”.
Os agentes da secretaria vinham reprimindo infrações ambientais de Baiano tanto no interior do imóvel quanto nos seus arredores, em áreas dentro do parque, onde constataram que ele havia desmatado 776 hectares (ou 776 campos de futebol) de 2015 a 2017. Essas ações de fiscalização resultaram em multas cujos valores, somados, ultrapassavam R$10,3 milhões. Segundo documentos que a Pública consultou, a Polícia Militar considerava Baiano e seus irmãos parte de um grupo de latifundiários donos de propriedades limítrofes ao parque que incentivava grileiros, em sua maioria trabalhadores pobres, a ocupá-lo para que posteriormente se beneficiassem das invasões.
Entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, a Sedam destruiu por duas vezes cercas de Baiano que estavam dentro do parque, o que o motivou a entrar na Justiça em fevereiro de 2018 contra a secretaria — foi então que Hedy Carlos Soares decidiu a seu favor pela primeira vez, em março. De acordo com relatórios analisados pela reportagem, a decisão teria dado fôlego ao movimento de grileiros e contribuído para aumentar a quantidade de invasores no parque, pois gerou neles a “falsa sensação de legalidade da invasão” e lhes deu a impressão de que poderiam também ter seus pedidos atendidos pelo Judiciário.
O flagra do juiz deixando a propriedade de Baiano foi a razão do processo contra ele primeiro na Corregedoria do TJRO e depois no CNJ. Soares se defendeu alegando não possuir relação comercial com o fazendeiro, mas que esse era o caso de um primo seu que vivia nos Estados Unidos e mantinha com Baiano um contrato de parceria pecuária para engorda. Segundo Soares, no dia em que foi abordado pelos policiais ao sair da fazenda Cantão, ele havia levado a esposa de seu primo ao local para verificar o andamento do contrato e a condição do rebanho. Além disso, apresentou documentos mostrando que, à época, tinha parceria para engorda de gado com outro proprietário rural, e não com Baiano.
A Corregedoria do TJRO concluiu, com base nessas informações, que o juiz não havia cometido infração disciplinar e arquivou o procedimento. Posteriormente, o CNJ abriu seu próprio processo — como é de praxe quando a corregedoria estadual comunica, por exemplo, o arquivamento de sindicância contra algum de seus magistrados — e confirmou a posição do tribunal de Rondônia, decidindo pelo arquivamento em maio de 2019.
No entanto, um comprovante de cadastro de exploração pecuária emitido pela Idaron, a que a Pública teve acesso, indica que, em 31 janeiro de 2018, Hedy Carlos Soares cadastrou em seu nome na agência uma ficha de bovídeos a serem criados em 121 hectares de pasto da fazenda Cantão — o juiz aparece na qualidade de “arrendatário” do imóvel.
De acordo com informações da Idaron, para que seja gerado um cadastro de exploração agropecuária em favor do arrendatário de um estabelecimento rural, deve ser apresentado o “contrato formalizado entre as partes (o responsável pelo estabelecimento agropecuário e o produtor), devidamente assinado”. No documento, consta que o contrato de arrendamento entre Soares e Baiano terminaria em 2 de janeiro de 2020 — hoje, o cadastro de exploração pecuária do juiz na fazenda Cantão aparece como “inativo” no site da agência.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a defesa do juiz informou que não teve acesso às informações citadas e irá se manifestar nos autos do processo que determinou sua prisão. Baiano foi contatado por sete números telefônicos, todos inativos, e não retornou o pedido de posicionamento enviado via rede social.
Também procurados, CNJ e TJRO não se manifestaram até a publicação do texto.
A prisão preventiva de Soares, que atuava na comarca de Buritis (cerca de 320 km de Porto Velho), no último dia 17, não tem relação com o processo do CNJ: resulta de um inquérito ainda em curso que tramita sob sigilo judicial, no qual é acusado de liderar uma organização criminosa formada por ele, uma advogada, dois policiais civis de São Paulo e um suposto laranja para cometer crimes na região, de acordo com o site Painel Político, que teve acesso ao processo.
A investigação teria começado da denúncia de uma mulher que alega ter sido extorquida com o marido para que transferissem todos os seus bens para o nome do laranja do magistrado. Ainda conforme informações da imprensa de Rondônia, ele foi preso no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, quando estava prestes a embarcar para os Estados Unidos, onde mora a sua família. Por conta do processo, Soares foi afastado da função por 180 dias, comunicou o TJRO à reportagem.
Antes dessa investigação e dos processos instaurados para apurar se havia favorecido Erivan da Silva Teixeira em 2018, Soares foi alvo de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) pelo qual recebeu advertência por ter sacado sua arma de fogo em local público. À época, em 2015, o portal Tudo Rondônia noticiou a decisão que determinou a punição.
No acórdão, consta que o juiz teria tentado se defender de um lutador de artes marciais, o que o tribunal considerou como ato de defesa “legítima e proporcional”. Ainda assim, a advertência foi aplicada.
De acordo com a decisão, o “juiz deve ser o espelho da sociedade a que está jurisdicionalmente integrado. Se sua conduta, seja pessoal, seja profissional, revela-se anômala, forçosamente irá repercutir negativamente no meio em que vive e atua, debilitando o seu conceito e, por extensão, tornando vulnerável o próprio Poder Judiciário”. Considerou-se que houve “negligência do magistrado na condução dos deveres inerentes ao cargo que exerce” e que a “penalidade de advertência” era suficiente para puni-lo.