Julião gostava de se gabar da ilibada reputação amparada pela figura de pastor da igreja do quadra, ali em Ceilândia. Bastião da moral e dos bons costumes, desfilava tamanha pompa enquanto os transeuntes, mesmo aqueles menos fiéis, cumprimentavam o religioso da maneira mais respeitável. Afinal, em se tratando de bons exemplos, ninguém podia com o sujeito, representante de Deus entre os pecadores.
O homem, ciente do seu poder sobre a comunidade, tinha o hábito de esticar a corda para ver até iria dar. Diante de uma oferenda menos robusta, tirava do bolso o costumeiro discurso de que qualquer centavo era bem-vindo, mas que aos generosos eram garantidos os assentos mais próximos ao Senhor. Era tiro e queda, pois o devoto tratava logo de tirar um quinhão a mais e depositar na sacolinha, que corria cada vez mais pesada entre os ajoelhados.
Quando o assunto era desavença matrimonial, Julião também possuía discurso preparado, mas que era usado quase como regra geral. Quase? Exatamente assim. É que havia os casos especiais, quando o líder religioso se deparava com uma adúltera de belas feições.
Bom de improviso, Julião convencia a infiel a passar por um ritual de purificação, que, naturalmente, deveria ser mantido em segredo. Já fragilizada pela infidelidade conjugal descoberta pelo marido, a mulher não percebia ou, então, fingia não perceber que o pastor também queria tirar uma casquinha. A verdade é que, no final, todos ficavam satisfeitos e, caso o esposo ainda ficasse em dúvida quanto a aceitar ou não a traidora de volta, lá ia o Julião ter uma conversa séria com o gajo.
— Estou admirado com a sua falta de fé, Francinaldo. Estou realmente admirado! Aliás, não é com a minha admiração que você deveria se preocupar.
— Como assim, pastor Julião?
— Parece que você se esqueceu da coisa mais importante, meu filho, que é o perdão.
— Mas, pastor…
— Não tem conversa, Francinaldo! Deus a tudo vê! Tudo! E se ele perdoou Lindaura, quem é você na fila do pão para se achar melhor do que Deus?
O fiel, estático, olhos arregalados, ajoelhava diante do pastor Julião, beijava-lhe as duas mãos e, em seguida, pedia perdão pela insensatez. E tudo se resolvia, mesmo que a adúltera, vez ou outra, fosse atrás do líder religioso para novo ritual de purificação.
Julião, de tão convincente, se via imbatível na retórica. Nada nem ninguém seria capaz de vencê-lo em um debate. E foi assim, com a sensação de mestre da palavra, que ele foi dormir naquela noite logo após mais um culto que até o próprio Jesus assinaria.
Meio da madrugada, o pastor acordou suando em bicas, quando o auge do pesadelo foi o enfrentamento com uma mulher, que disse se chamar Sua Consciência.
— Minha consciência?
— Por favor, Julião, Consciência com “C” maiúsculo.
— Só pode tá de brincadeira!
Julião não conseguiu voltar a dormir. Inquieto, andou pela casa, enquanto Marília, a esposa, despertou.
— O que aconteceu pra você se levantar tão cedo, amor?
— Nada. Não é nada. Estou com sede.
— Então, beba água e volte pra cama.
Julião foi até a cozinha, encheu um copo e o levou até os lábios. No entanto, antes de sorver o primeiro gole, a imagem da tal Sua Consciência apareceu gargalhando em sua frente.
— Não faça barulho! Minha mulher está acordada!
— Não se preocupe, Julião, somente você pode me ver e ouvir.
— E o que você quer de mim?
— Hum! E por acaso você pensa que quero alguma coisa de você, seu pastor de araque?
— Dobre a língua pra falar de mim!
— Hum! Pelo visto, você é mais prepotente do que imaginei. E pensar que eu até tinha certa admiração por você.
— Sério?
— Sim. Você é mesmo bom em esconder as coisas. Só que você se esbarrou com um problema.
— Problema? E qual seria?
— É que sou ótima em encontrá-las.
Não se sabe o que aconteceu com o pastor Julião, mas dizem que nunca mais reclamou das doações, por menores que fossem, bem como engavetou todos seus desejos de fazer novo ritual de purificação. A tentação é grande, mas o homem, ao que tudo indica, se tornou um bastião da moral e dos bons costumes.