Protetores do Cerrado
Kalunga sofre perseguição, grilagem e com mentiras
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emNo caminho para a comunidade do Engenho II, placas na estrada de terra vermelha avisam a chegada ao Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Há também indicações para a cachoeira Santa Bárbara, uma das mais procuradas por quem visita a Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Ao chegar à comunidade, porém, a lojinha de artesanato, que vende produtos típicos do cerrado, está fechada e a poeira do balcão de informações turísticas sinaliza a ausência de visitantes, uma fonte de geração de renda importante para o quilombo, o maior em extensão do país, conhecido pelas belas paisagens e pelas festas religiosas.
A pandemia esvaziou a vila de turistas, embora todos os adultos quilombolas, um dos primeiros grupos de prioridade no calendário da vacinação contra a covid-19, já estejam imunizados nesse início de setembro. O quilombola Damião Moreira dos Santos, 35 anos, nos recebeu preocupado com o almoço: sem o movimento, os restaurantes da comunidade não estão funcionando.
A cultura tradicional e o cerrado preservado do território — com chapadas, vales, cachoeiras, nascentes e rios que anualmente atraem turistas ao sítio — deram ao quilombo o título de Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca), registrado em fevereiro pelo Programa Ambiental da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi a primeira comunidade no país a se autodeclarar Ticca, e a iniciativa criou um protocolo brasileiro para que outros povos passem pelo processo e ganhem o reconhecimento internacional desde que cumpram três critérios: pertencimento, governança e práticas de conservação. O registro é voluntário, ou seja, vai da vontade da comunidade em receber o selo.
Damião, que era gerente de projetos da Associação Quilombo Kalunga (AQK), foi um dos primeiros da comunidade a ouvir falar no selo internacional – em 2018, uma representante do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF Cerrado) sugeriu que o território se enquadraria como Ticca.
O nome esquisito indicava um conceito aparentemente novo, mas que, na verdade, descrevia uma prática de preservação do território mantida pelos quilombolas há pelo menos 300 anos. A obtenção da certificação foi discutida em mais de uma dezena de reuniões e aprovada em assembleia com participação das 39 comunidades que integram o território de 262 mil hectares, nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás.
Damião atribui a conservação do cerrado a uma “fraqueza” de seus antepassados em transformar a natureza. “Por mais que a gente quisesse fazer um grande desmatamento, a gente não conseguia, porque tudo o que a gente fazia precisava ser no braço, pelo próprio suor. Então, você fazia uma roça de um hectare, no máximo, para sustentar sua família. E quando você deixava aquela área para fazer uma nova roça, em cinco anos, já estava mato alto de novo porque você não usou um maquinário para tirar as raízes.”
A “fraqueza” do passado se tornou ponto forte hoje, quando o discurso ambientalista se incorporou às práticas agrícolas da associação. O regimento interno da AQK, aprovado em 2019, que dispõe sobre as regras para a gestão do território e a manutenção dos costumes quilombolas, prevê a proibição do uso de máquinas para abertura de roças com área superior a 2,5 hectares por família. Além disso, determina que é obrigatória a rotação de cultura em roçados abertos mecanicamente.
Em compensação, o turismo se tornou uma fonte promissora de renda, principalmente para as vilas mais próximas de Cavalcante. Para os que estão em áreas mais distantes do quilombo, porém, as dificuldades são maiores e ganharam força com um novo inimigo: a seca rigorosa e duradoura que ameaça a sobrevivência dos agricultores familiares.
Mudança de clima
À diferença das estradas para o Engenho, o trajeto ao povoado de Congonhas, que também faz parte do território Kalunga, tem pouca ou nenhuma sinalização. Dependendo da condição da estrada em alguns trechos, somente uma caminhonete com tração nas rodas pode avançar sobre rios ou pela terra. A quase 100 quilômetros da primeira comunidade, mais turística, aqui o povoado vive quase integralmente da agricultura.
Ainda não há energia elétrica nem rede de telefone celular. Na casa de Antônia de Souza Fernandes, 58 anos, a comunicação existe graças às três placas solares doadas, mas que não recarregam o suficiente para manter a energia durante todo o dia. A prioridade de dona Antônia é o roteador Wi-Fi – foi assim que conseguimos entrar em contato por WhatsApp para solicitar a hospedagem — e, em segundo lugar, manter os alimentos refrigerados.
À noite, sob a luz de um candeeiro que ilumina a cozinha, Antônia conta sobre a dificuldade, por causa da seca, em manter qualquer cultivo onde, antes, costumava plantar mandioca, arroz, milho e feijão-de-corda. “A chuva foi diminuindo, diminuindo a cada ano. Esse último ano foi pior”, diz a agricultora. “Saindo daqui, vocês vão dar num córrego que antes, nos anos 1980, eu nunca tinha visto seco. Tem muitos anos que ele deu para secar e, nos últimos anos, ele mal jorra”, relata. “Hoje já não conseguimos plantar mais. O arroz não dá mais, pela falta da chuva”, diz dona Antônia, enquanto fuma um cigarro de palha. “O que a gente plantou em novembro, não colhemos um caroço.”
Alguns vizinhos têm se adaptado com o uso de cisternas, com 140 unidades entregues pelo governo federal em 2019. Mas, ainda assim, a chuva não tem sido suficiente para encher o reservatório de água. Dona Antônia, que não tem cisterna, coleta as águas do rio Grande para o uso doméstico com um motor-bomba.
Aposentada, ela conta que passou a usar a renda para comprar alimentos que antes produzia em seu terreno. Mensalmente, um vendedor vai até sua casa, na zona rural, para vender os mantimentos. “Em vez de eu pagar R$ 120 de passagem, para ir e voltar de Cavalcante, eu compro dois ou três fardos de arroz. O dele acaba saindo mais em conta, porque eu gasto muito indo até a cidade.”
Quem também se queixa da mudança no clima é o quilombola Boaventura Bispo Carvalho, de 57 anos, irmão de dona Antônia e morador da comunidade vizinha, Salinas. Homem negro de pele retinta e feição tranquila, ele faz jus ao apelido pelo qual todos o conhecem na comunidade: Naboa.
Pelo menos desde a geração de seus avós, até onde se recorda, a família de Naboa vive na comunidade, onde ele criou seus 12 filhos. Ele também lamenta a perda de produção por causa da mudança no regime de chuvas e nos leva até uma clareira atrás de sua casa para mostrar a vegetação seca. “Há dois anos, estava tudo cheio de água, até a borda. Quase uma lagoa.”
Trabalhando na roça desde os 13 anos, Naboa se sente cansado demais para o trabalho braçal. “Estou me sentindo enfraquecido, sem a mesma força. O que eu fazia antigamente hoje eu já não estou dando conta de fazer”, desabafa. Ainda a alguns anos da aposentadoria, ele diz que um trator o ajudaria a reduzir esforços e aumentar a produtividade das plantações de arroz, milho e mandioca, principalmente no período de estiagem.
Ele não está sozinho. São muitos os que preferiam ter um maquinário no terreno e a AQK ainda estuda como trazer inovação ao plantio sem deixar a tradição — e a preservação do território — para trás. Damião, que hoje integra a diretoria da associação, reconhece a necessidade de aumentar a produção, mas diz que os quilombolas não podem copiar as práticas dos fazendeiros locais: “A preservação do território pode estar em risco, tanto pelo abandono do governo federal quanto pela entrada destes fazendeiros, que têm uma visão de transformação para grandes lavouras e grande pecuária”, diz. “Também nos preocupamos com essa mentalidade nos próprios kalungas. Os discursos que a gente ouve são muito fortes, dizendo que temos que deixar de miséria, usar trator, usar máquina. Se a gente não perceber que isso também é um problema, essa preservação estará ameaçada”, continua. “A gente quer melhorar as práticas, facilitar mão de obra e dar dignidade para as famílias. Mas isso tem que vir com boa orientação.”
Uma das propostas da AQK é criar uma roça coletiva na região de Salinas, com uma área preestabelecida para o uso dos tratores, o que permitiria maior controle do desmatamento, respeitando o limite de área mecanizada imposto pelo regimento interno. Mas, para conseguirem a licença para o plantio, os quilombolas dependem da titulação definitiva daquela área, o que esperam há duas décadas.
A comunidade quilombola Kalunga está qualificada como sítio histórico e patrimônio cultural por duas leis estaduais, de 1991 e 1996. Em 2000, a Fundação Palmares reconheceu o território tradicional e, cinco anos depois, a comunidade foi identificada como remanescente de quilombos. Em 2003, a transferência de competência da titulação dos territórios quilombolas foi repassada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que abriu o processo de titulação das terras um ano depois, em 2004. A AQK tem hoje a posse de pouco mais da metade do Sítio Histórico, mas apenas 13% dos 262 mil hectares estão titulados definitivamente em nome da entidade. Mais de 44% do território que ainda precisa ser regularizado têm origem em terras privadas e demandam processos de indenização. O último título fundiário concedido à comunidade foi em 2018.
Mesmo com as dificuldades que tem enfrentado no território por causa da seca, dona Antônia acredita que a solução é a titulação coletiva do território. A posse da área onde vivem ainda não foi transferida definitivamente para a AQK. “Se eu precisar ir para outro lugar, por conta da seca, com a posse coletiva sei que posso ir”, argumenta Antônia, que se preocupa com o futuro da comunidade sem a titulação.
Enquanto muitos esperam que o reconhecimento internacional possa pressionar o governo brasileiro a resolver a questão fundiária, a consequência mais imediata do título de Ticca, oficializado em fevereiro, são novas oportunidades de geração de renda para a comunidade. O atual presidente da AQK, Jorge Oliveira, disse acreditar que a certificação impacta, principalmente, a expansão do ecoturismo. “Se você tem um território reconhecidamente preservado, com espécies de frutos do cerrado, isso vai ajudar muito na divulgação”, disse ele, que também trabalha como guia turístico.
Além do prestígio, o status de território conservado pode atrair especuladores interessados em mecanismos de retribuições financeiras por serviços ambientais, como acesso a crédito ou entrada no mercado de carbono. No sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR), por exemplo, já existem sobreposições de registros no território Kalunga. Criado em 2012 como instrumento de regularização e exigência para acesso a crédito rural, o mecanismo se transformou em um dos principais métodos conhecidos para “grilagem verde”.
O título internacional pode ainda trazer parcerias – ou armadilhas –, inclusive em setores inexplorados: uma pauta que se abre ao território com a obtenção do certificado de preservação é a entrada no mercado de carbono — cuja regulação está sendo discutida nesta semana em Glasgow, na Escócia, na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática. Em abril de 2020, dois meses após o anúncio do registro da Ticca, a AQK recebeu a proposta da empresa suíça South Pole para realizar a exploração de carbono da reserva. O negócio prometia render R$ 200 mil por ano aos kalungas com a certificação de uma área de 60 mil hectares. Sem referências de projetos no Brasil no setor, a proposta não foi levada adiante por insegurança dos quilombolas com um ramo ainda novo e desconhecido.
Mas, em agosto deste ano, a prefeitura de Cavalcante fechou um acordo com o Instituto de Reflorestamento Eden, com sede nos Estados Unidos, para a restauração de 5 mil hectares de áreas degradadas do cerrado em terras públicas e privadas. O documento do acordo foi obtido pelo portal O Eco. O instituto também procurou a AQK para firmar a parceria, que está em processo de aprovação com a comunidade.
Por telefone, o prefeito Vilmar Souza Costa (PSB) afirmou à Agência Pública que o município vai identificar as áreas-alvo do empreendimento e fiscalizar o processo, enquanto a organização parceira será responsável pelos recursos, pela contratação de mão de obra local e pelas mudas e sementes. “A princípio, não vimos nada que fira a transparência ou legalidade do projeto”, disse. Esta é a primeira ação do Eden no Brasil.
Preservação do Éden
Com nome bíblico e lema “plantar árvores, salvar vidas”, a organização sem fins lucrativos estadunidense foi fundada pelo pastor metodista Stephen Fitch em 2004. Embora tenha missionários em sua cúpula, o Eden afirma não ter motivações de cunho religioso. Com receita de US$ 18,2 milhões segundo relatório de 2020, a organização recebe doações de grandes empresas como a Verizon, gigante do ramo de telecomunicações, e a companhia aérea Emirates. Em comparação a 2019, quando recebeu mais de US$ 4,8 milhões, a renda da entidade cresceu 275% em um ano. O incremento deve-se, em grande parte, à doação de US$ 5 milhões por Jeff Bezos, dono da Amazon, como parte de um fundo criado pelo bilionário para combater as mudanças climáticas.
Com o objetivo declarado de “fazer restauração ecológica de áreas degradadas com participação comunitária local remunerada”, a entidade chegou ao Brasil no primeiro semestre deste ano, mas suas atividades internacionais começaram 17 anos antes, na Etiópia em 2004. Hoje, a Eden Projects está em nove países, entre eles Haiti, Nepal, Madagascar, Quênia e Indonésia — a entidade informa em relatório já ter realizado o plantio de 488 mil árvores e empregado 17,5 mil pessoas nesses países.
Em julho, a Eden apresentou seu projeto de restauração em um edital da prefeitura de Alto Paraíso de Goiás que buscava soluções para problemas ambientais do município. A proposta apresentada não agradou a analistas do edital, como a pesquisadora Natashi Pilon, do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“A proposta de trabalho deles em todos os lugares é o plantio de árvores. Isso ficou claro para a gente durante a reunião com eles”, relata Natashi. “Em determinado momento, disseram que estavam plantando árvores para que os países do Norte pudessem continuar emitindo gás carbônico”, conta. “Para mim, isso é quase uma forma de colonização.”
A preocupação da pesquisadora é que o plantio de árvores interfira em um bioma que não tem florestas como característica, como é o caso do cerrado. Uma alteração nesta vegetação, segundo a pesquisadora, poderia piorar ainda mais o regime de chuvas na região. “Isso poderia comprometer a quantidade de água em uma região que já tem escassez hídrica e até reduzir o turismo”, alerta. “Essa questão de estoque de carbono a todo custo precisa ser vista com ressalvas”, pondera.
“Fica implícito, pelas grandes empresas que estão financiando o projeto, que tem muito dessa história de greenwashing. Ou seja, dizer que está fazendo uma ação para melhorar o planeta quando aquela ação não está cumprindo um serviço ambiental de fato.”
O temor da pesquisadora é compartilhado pela bióloga Bruna Braz, integrante da Cerrado de Pé, associação de coletores de sementes do cerrado. A bióloga conta que a Cerrado de Pé instruiu a Eden e chegou a fornecer sementes, mas não fechou nenhum tipo de parceria com a entidade. “Explicamos que não faria sentido trabalhar com mudas e que o modo mais eficaz, no cerrado, é com sementes. É um desperdício de dinheiro, na verdade, trabalhar com mudas porque a taxa de mortalidade é muito alta. Se você plantar mil mudas, apenas 20% vão para frente”, explica.
Bruna questiona a sustentabilidade do modelo apresentado pela Eden, já que o formato não propõe a autonomia das comunidades e não fornece tecnologias, capacitação das comunidades locais ou alternativas para a criação de renda. “Daqui a cinco anos, quando o projeto acabar, vai acabar o emprego? Como funciona o impacto social?”, pergunta.
As críticas de ambientalistas foram rebatidas pela Eden em uma audiência on-line promovida pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Cavalcante, no final de outubro, para esclarecer detalhes sobre a parceria. Na ocasião, Maxwel Araújo, gerente operacional da Eden no país, disse que a promessa de plantar árvores é apenas estratégia de comunicação. “Isso é apenas uma linguagem ilustrativa. Não é que vamos pegar o cerrado e plantar várias árvores, porque nós sabemos que não é toda área que tem uma floresta”, afirmou, garantindo que a Eden monitora as áreas restauradas a longo prazo. “Nos comprometemos com a marca de 5 mil hectares em Cavalcante. Temos como meta a recuperação de mil hectares por ano. Ou seja, o tempo de plantio e de operacionalização aqui seria no mínimo cinco anos e pode ser estendido”, disse na audiência. “Mas nós fazemos questão de monitorar, fotografar e ver o crescimento daquilo que a gente começou e se ele está se transformando em um bioma saudável, o que poderia levar 30 anos.”
O secretário do Meio Ambiente e Turismo de Cavalcante, Rodrigo Batista Neves, informou à reportagem que a Eden deve investir inicialmente R$ 2 milhões no projeto de restauração. O gestor diz que a promessa de geração de renda para a comunidade foi outro fator determinante para o encaminhamento da parceria, mesmo motivo apontado pela AQK para fechar o acordo. O projeto ainda tem que ser aprovado em consultas às comunidades do quilombo, como prevê o regimento interno.
Coronavírus mata um por dia
Lideranças históricas estão entre as mais de cem mortes e quase mil infectados. Quilombolas também relataram racismo na busca de testagem e atendimento.
Damião, que já foi contratado pela Eden para gerenciar o projeto, confirma que a oportunidade de trabalho é a principal motivação para a AQK. “Nosso desejo como associação e povo quilombola é que as pessoas continuem no quilombo, que não saiam porque não tem como ficar no território. Essa é uma oportunidade muito boa de gerar trabalho com a conservação”, afirmou.
Em outubro, a organização lançou dois editais para pré-selecionar trabalhadores para o projeto em Cavalcante, focado em pessoas com renda de até meio salário-mínimo. “Queremos ofertar o trabalho para aqueles que mais precisam e têm menor renda”, disse o representante da Eden, sem detalhar o regime de contratação dos trabalhadores envolvidos no reflorestamento das áreas. Na ocasião, a empresa afirmou apenas trabalhar, como padrão, com o salário-mínimo de cada país onde atua.
Nem a Eden nem empresas doadoras, ressaltou Maxwel Araújo, têm domínio sobre as áreas reflorestadas. Mas a legislação dos EUA permite que as doações sejam deduzidas de outros impostos e que possam ser usadas para compensar infrações ambientais no país. “Esses doadores estão abatendo impostos, às vezes estão sanando multas e condições ambientais que foram sentenciadas a cumprir ou muitas vezes querem fazer marketing ou propaganda, então eles se atrelam à imagem da restauração ambiental feita por nós. Essas são nossas fontes de recursos”, disse o gerente operacional da Eden.
Antes de apresentar seu projeto de reflorestamento ao município de Alto Paraíso e de Cavalcante, ambos na Chapada dos Veadeiros, a empresa também tentou alavancar projetos na região da Amazônia e já está em processo de negociações em outros estados do país, como Piauí e Acre. “Podemos atuar em qualquer lugar que tenha áreas degradadas e não vamos atuar apenas no município de Cavalcante”, afirmou Araújo.
Nas redes sociais, a instituição já divulga as ações no território brasileiro, como mostra um post publicado no Instagram: “Por toda a Amazônia, vamos contratar pessoas nas comunidades locais para plantar uma variedade de plantas nativas, reflorestando aproximadamente 25 mil hectares”, informa o texto em inglês, anunciando um número cinco vezes maior que o prometido nas ações previstas para o cerrado.
Em entrevista à Pública, uma fonte, que preferiu não se identificar, afirmou que a Eden tem interesse em entrar no comércio de crédito de carbono no exterior e já teria aberto, em agosto deste ano, uma empresa privada nos Estados Unidos – a Pública não conseguiu confirmar essa informação. Por mais de duas semanas, a reportagem esteve em contato com a Eden, por e-mail e telefone, para agendar entrevista com seus porta-vozes, mas não recebeu respostas às perguntas enviadas à instituição.
Uma estratégia contra invasões
Até o momento, a certificação de Ticca tem cumprido pelo menos um papel: reforçar a estratégia de proteção do quilombo contra uma nova onda de invasores. Ao denunciar a agressão, a associação lembrou a obtenção do título internacional, que também tem sido utilizado como mecanismo de pressão para acelerar a regularização fundiária.
Em relatório produzido em agosto, foram identificados 16 conflitos por áreas em andamento dentro do sítio histórico (pessoas não quilombolas tentando fixar posse ou negociar áreas já desapropriadas pelo Incra). Além disso, com a paralisação de pagamentos de indenizações na região por parte do governo, os quilombolas dizem que fazendeiros têm retornado às terras.
A professora quilombola Ester Fernandes de Castro, de 55 anos, relata invasões na comunidade da Ema, no município de Teresina de Goiás, desde 2019. A casa de sua madrinha, que estava ausente da comunidade por 15 dias devido a um tratamento médico, foi uma das atingidas pelos criminosos. Quando ela retornou à residência, encontrou uma nova fechadura na porta. “Eles chegaram a vender a área para outra pessoa de Pernambuco”, conta a afilhada.
Na mesma ação, uma casa de um quilombola, que estava em construção, foi derrubada por uma motosserra. Segundo o boletim de ocorrência registrado na época, o quilombola de 54 anos morava com a família no local havia mais de 30 anos. Além desse episódio, Ester relatou ameaças, com arma de fogo, sofridas por outra colega, na semana em que realizamos a entrevista.
Os novos casos trazem, para Ester, lembranças de episódios vividos na comunidade em 1990, quando se acirraram os conflitos pela terra, naquele momento ainda não reconhecida pela União. Naquele ano, a casa de seu pai foi derrubada por um trator, na mesma comunidade que, 30 anos depois, expulsariam sua madrinha. “O conflito era em todo o território, para tirar a gente da comunidade mesmo”, se recorda. “Comecei na luta pela regularização da terra naquele ano.”
Em 1995, Ester participou da célebre Marcha de Zumbi, em Brasília, que reuniu 30 mil pessoas para denunciar a falta de políticas públicas para a população negra no país. “Eu era uma das articuladoras aqui da região”, conta. No evento, foi realizado o I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. A mobilização deu origem, um ano mais tarde, à Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), organização da qual ela faz parte.
A partir de 2003, com o Decreto 4.887, que regulamenta a titulação das terras ocupadas por remanescentes quilombolas, o quilombo passou por um período mais tranquilo com relação às invasões, diz Ester. A promessa de pagamento das indenizações e os assentamentos definitivos diminuíram os conflitos. Ela avalia que o novo ciclo de invasões foi impulsionado, indiretamente, pelo governo Bolsonaro — o presidente chegou a ser acusado por discursos de ódio feitos contra quilombolas em 2017, quando deputado federal (em outubro de 2017, ele foi condenado a pagar R$ 50 mil de indenização em decisão da primeira instância, mas foi inocentado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região em setembro de 2018, durante análise de recurso). O presidente foi o que menos titulou territórios quilombolas desde 1995: apenas 12 títulos foram entregues em dois anos e meio de gestão, nenhum em 2021.
“Ele não apoia as questões quilombolas e indígenas. O Incra mesmo está sem estrutura e recursos para avançar com os pagamentos das fazendas. Pelo menos é o que dizem quando a gente cobra. Isso facilitou para os fazendeiros que já estavam com a intenção de voltar para o território”, argumenta Ester. “Muitas dessas invasões, a gente sabe, são para plantar soja, para o agronegócio. Queremos nosso território do jeito que o preservamos. Eles já sabem que vão ter que sair e, por isso, desmatam”, afirma ela.
Na mesma linha, Damião enxerga, como origem da nova onda de invasões, o avanço de uma ideologia difundida por empresários do agronegócio e reforçada pelo presidente da República, em contraposição ao modo como os povos quilombolas e indígenas vivem, ocupam a terra e preservam o território. “Chamam a gente de preguiçoso, mas tudo o que a gente come, a gente tira do braço, apesar de a gente não ficar rico com isso. Mas a gente não quer ficar rico, a gente quer viver, sobreviver e festejar”, diz o quilombola.
Em todas as entrevistas que fizemos, ouvimos o mesmo lamento: se não fosse a pandemia, naquela semana ocorreria a Romaria do Vão do Moleque, uma das mais célebres festas da comunidade, marcada pelos muitos festejos populares religiosos. Outra tradição que os kalungas buscam preservar.