De Santo André ao Oscar
Karmann Ghia TC de ‘Ainda Estou Aqui’ tem sinal verde na redação de Notibras
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emFoi em uma agradável noite de agosto de 2023 que no Leblon, bairro do Rio de Janeiro, dei minha contribuição para o cinema nacional nas filmagens de “Ainda Estou Aqui”, longa-metragem que concorrerá ao Oscar de melhor filme internacional.
De perto, pude testemunhar como cinema exige muito trabalho. Uma equipe gigantesca, equipamentos, iluminação, figurinos, diretor, técnicos e câmeras, atores e figurantes para filmar algo que duraria, na tela, alguns poucos minutos.
Presenciei toda a preparação para filmarem a cena da livraria. Para quem viu o filme, trata-se do momento em que os personagens principais discutem com amigos sobre uma viagem ao exterior, dada a difícil situação política no Brasil na época em que o drama retrata. A minha modesta participação deu-se no ambiente externo desta cena, emprestando para a produção do filme o meu Karmann Ghia TC branco-lótus que, por instantes, aparece ali estacionado.
O Karmann Ghia TC é um automóvel esportivo, da Volkswagen, fabricado entre 1970 e 1976. Em verdade, de esportivo ele tem o design, porque seu motor traseiro tipo boxer plano, refrigerado a ar, é bem modesto no desempenho, mesmo levando-se em consideração outros carros de sua época.
Na cena aparece só a parte lateral traseira do TC, que estava estacionado em frente à livraria, cobrindo certos aspectos do local que a direção não queria que aparecessem. Mas foi o suficiente para um amigo me telefonar logo após assistir ao longa e perguntar se era o meu. E era mesmo, apenas caracterizado pela produção com um par de placas amarelas do antigo Estado da Guanabara.
É só mais uma passagem no currículo do automóvel que, se não tem outros momentos de glória cinematográfica, ao menos galgou sua carreira particular de conquistas. Fabricado em São Bernardo do Campo em algum momento entre fevereiro e março de 1973, caprichosamente montado quase à mão, passou 42 anos na cidade de Santo André, no Estado de São Paulo, até eu comprá-lo do antigo dono em 2015.
Foi uma aventura! Embarquei com meu pai de avião até São Paulo e, de lá, um amigo levou-nos a Santo André, onde, com o negócio já fechado, entramos nele e, após breve passagem pelo Rodoanel, ganhamos a Via Dutra até o Rio de Janeiro, numa viagem de aproximadamente 6 horas sem contratempos. Viemos tranquilos, aproveitando a paisagem, ganhando acenos e buzinadinhas de caminhoneiros e outros motoristas pelo caminho, revezando na direção do TC.
Carro antigo costuma ter nome. Longamente pensei em um para o Karmann Ghia, que veio integrar uma pequena coleção junto de seus congêneres: um Fuscão 71, o Valente, um Fusquinha 68, o Maggiolino, outro 73, o Cuca, uma Kombi estilo “corujinha”, a Leopoldina, a Brasília 80, Laura, dentre outros. Não me veio nenhum à mente. Mas logo meus amigos antigomobilistas o apelidaram de “Tio Celso”, em homenagem ao meu pai.
Costumo dizer que ele não é um carro para tímidos, porque vira assunto onde passa. Alguns o olham com estranheza, pois raramente se vê um circulando hoje em dia. Estima-se que apenas 18 mil foram fabricados. Quantos ainda existirão em condições de uso? Seja no posto de gasolina, ou em algum lugar aonde vá com ele, normalmente sou abordado por quem pergunte se ele é importado, querendo conhecer a marca ou lembrando que, no passado, um familiar ou conhecido possuía um idêntico. Há também quem se espante em saber que, para abastecer, abro o bocal do tanque de gasolina dentro do porta-malas dianteiro, não se achando ali o motor, apesar de sua frente comprida.
Seu perfil baixo e leve responde divertidamente ao rodar. Ele anda bem, é agradável na condução e faz qualquer viagem virar um divertimento.
Gosto de dirigi-lo em silêncio, escutando o ronco do motor ecoando pelo interior, imaginando quanta história ele já testemunhou em seus quase 52 anos de vida.
Não se trata de um modelo impecável. Há muitos melhores que o meu por aí, posso testemunhar toda vez em que compareço ao encontro bianual de proprietários de modelos Karmann Ghia. Mas não troco ele por nenhum outro. Por já ter feito toda sorte de manutenção corretiva e preventiva em sua mecânica, conheço-o intimamente e deposito-lhe toda minha confiança. Sei que, para o fim a que se destina, ele ainda presta a mim exatamente o mesmo serviço que fielmente prestou ao primeiro dono que, pagando mais de uma centena de milhares de cruzeiros, o comprou numa concessionária Volkswagen.
É apenas um objeto inanimado, eu sei. Mas admirando-o à noite, guardado na garagem, observo suas formas, seus volumes, os detalhes cromados da carroceria, a harmonia com que seus elementos foram combinados e, entre seus faróis apagados e meus olhos parece haver uma estranha cumplicidade, como se afirmássemos mutuamente um compromisso de companheirismo. O TC esperando que eu cuide dele. E ele me prometendo, ainda, muitos passeios, viagens e aventuras. E, quem sabe, até participar de alguns filmes que, no futuro, também possam concorrer ao Oscar.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com