Quando teve início a contagem dos votos que iriam eleger o novo ou reeleger o atual presidente dos EUA, no início da semana passada, fui tomada por uma obrigação quase obsessiva de acompanhar a apuração, estado por estado, urna por urna. Eu e o mundo quase todo, na verdade. Clima de final de Copa: Quem ficará com a Casa Branca, o democrata Joe Biden ou o Republicano Donald Trump?
Eleição realizada em plena pandemia do coronavírus, que já matou cerca de 230 mil pessoas naquele país, que tem o maior número de contaminados do mundo e previsões pessimistas para os próximos meses, com a chegada do inverno e sem vacina para barrar a proliferação da doença.
Nesse cenário surreal, o motivo da minha agonia era, óbvio, com o resultado da disputa. A torcida era pela derrota:
“Não que Joe Biden seja um santo, mas não é possível que Donald Trump seja reeleito”. “Não é possível que os americanos darão mais quatro anos de poder para aquele sujeitinho abjeto!”. Afinal, o que acontece em Vegas, não fica só em Vegas não, é grosseiramente imitado por aqui pelo atual mandatário da nação, que eu prefiro nem escrever o nome.
Depois de longos quatro dias de expectativa, numa apuração arrastada e complicada, enfim na tarde de sábado, Joe Biden conseguiu a soma de 273 votos no colégio eleitoral, três a mais do que o mínimo necessário e foi eleito o 46º presidente dos Estados Unidos. É o candidato à presidência mais votado da história americana, recebeu ais de 74 milhões de votos. Para desespero de Donald, que se refugiou num clube de golfe para chorar sua derrota.
No entanto, duas potentes mulheres negras tiveram papel decisivo para a vitória do ex-vice presidente de Barack Obama como o próximo titular da Casa Branca. São as protagonistas desse momento histórico nas eleições americanas .
A eleita vice-presidente, Kamala Harris, de 56 anos, é a primeira mulher a ocupar o cargo. A senadora pela Califórnia, de origem jamaicana e indiana, foi escolhida para compor a chapa no momento em que os EUA vivem uma onda de protestos antirracistas e contra a violência policial, liderados pelo movimento “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”).
O assassinato do cidadão negro George Floyd, de 46 anos, durante uma abordagem policial, em Minnesota, foi o gatilho para a série de manifestações em vários outros países. Aqui no Brasil, a morte brutal provocou forte comoção, a violência contra a população negra, em todos os níveis, não dá trégua. Floyd foi sufocado até a morte por um policial branco, que pressionou o joelho sobre seu pescoço por quase nove minutos, apesar de ouvir todo tempo a dor do: “eu não consigo respira, por favor, por favor”.
A cena é chocante e escancarou ao mundo o racismo endêmico da sociedade americana e a falta de interesse do governo em combater as causas dos conflitos raciais. Ao contrário, Trump despreza abertamente negros e imigrantes, acusando-os como responsáveis pela maioria dos crimes no país. Declarações que incentivam ações truculentas das forças policiais e de seus apoiadores, resultam em frequentes mortes violentas e prisões arbitrarias.
A escolha de Kamala Harris para fazer par com Biden é vista como um trunfo para o partido Democrata. Comprometida com a causa antirracista, carismática e bem articulada, Kamala foi fundamental na missão de atrair potenciais eleitores negros, já que o voto não é obrigatório nos EUA.
No discurso da vitória, a vice eleita ressaltou o papel das mulheres na luta pelos direitos civis:
– “Mulheres que lutaram e que se sacrificaram por igualdade, por liberdade e por justiça para todos. Inclusive as mulheres negras que muitas vezes são esquecidas, mas que são a base de nossa democracia. Todas as mulheres que trabalharam para poder votar e mudar a lei do voto. E agora, com essa geração de mulheres que depositou seu voto e continuou a lutar pelo direito de votar e serem ouvidas”.
Antes, durante a campanha, ela declarou diversas vezes:
– “Mulheres negras e mulheres de cor há muito tempo estão sub-representadas em cargos eletivos e em novembro temos a oportunidade de mudar isso”.
A outra voz estrondosa que ajudou a mudar o cenário eleitoral americano de 2020, é a ex-deputada Stacey Abrams. Ela é tida como a grande responsável pela virada de posição do eleitorado no estado da Geórgia, reduto de tradição republicana. A Geórgia não direcionava seus 16 votos no Colégio Eleitoral a um presidente democrata desde Bill Clinton em 1992.
E quem é Stacey Abrams?
Advogada tributária e ativista política, Abrams liderou o movimento que garantiu o registro de cerca de 800 mil novos eleitores no estado e lutou contra regras de supressão de votos, que atingem majoritariamente os negros. Em 2018, na véspera da eleição para o governo da Georgia, em que Stacey disputava o cargo pelo Democrata, o então secretário de Estado, o republicano Brian Kemp, cancelou em massa mais de um milhão de registros de eleitores entre 2012 e 2018, e congelou outros cerca de 53 mil registros alegando pequenos erros nos registros. A maioria deles de eleitores negros. Estratégia que fez Abrams perder 55 mil votos na disputa. Kemp foi eleito governador da Georgia com os votos dos seus eleitores brancos conservadores.
Inconformada, Stacey Abrams intensificou sua luta pelo reconhecimento da população negra e foi em frente, com força e garra. Graças aos esforços da ativista, de 46 anos, a vitória de Biden\Harris na terra do grande líder pelos direitos civis, Martin Luther King, num ano tomado pelos protestos contra o racismo, tem valor especial. O movimento pela recuperação de registros eleitorais e incentivo à votação em massa da comunidade negra teve reflexo em todo território americano. E serve de exemplo para os países que também subjugam seus cidadãos pretos.
O correspondente da CNN, Van Jones, jornalista negro, chorou emocionado no ar, ao noticiar a derrota de Donald Trump: “É mais fácil ser pai nesta manhã. É mais fácil dizer aos seus filhos que o caráter é importante, dizer a verdade é importante ser uma boa pessoa é importante. É uma reparação para muitas pessoas que realmente sofreram o “eu não consigo respirar”, muitas pessoas sentiram que não podiam respirar.
Sufoco que sentimos por aqui também. Nos próximos dias teremos as eleições municipais e há uma boa campanha pelo voto preto rolando pelas redes sociais. “Preto vota em preto”, é a chamada. No país onde um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, que tem o governo que temos e o sistema racista estrutural que temos, tentar mudanças concretas por meio das urnas, é um atalho poderoso, que não deve ser desprezado.
*Elisa Mattos é jornalista. Texto publicado originalmente no blog da autora