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Com Deus - sem Diabo na terra do sol

Lá se foi Nelson, o pai amável do cinema brasileiro

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Autor/Imagem:
Luiz Zanin Oricchio

A dimensão da perda de Nelson Pereira dos Santos, que morreu sábado, com 89 anos, está para ser avaliada pelo cinema brasileiro. Em todo caso, ela é enorme, e há o consenso de que Nelson foi uma espécie de pai do moderno cinema brasileiro, assim como Humberto Mauro havia sido de sua fase anterior.

Basta lembrar que são de sua autoria os dois filmes que prepararam o terreno para o Cinema Novo – “Rio 40 Graus” (1955) e “Rio Zona Norte” (1957). E é dele uma das obras vitais do mais importante momento do cinema nacional. “Vidas Secas”, que ele adaptou de Graciliano Ramos, compõe, ao lado de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, a chamada “Santíssima Trindade” do Cinema Novo.

Paulistano, Nelson nasceu em 1928. Foi contemporâneo das iniciativas industriais dos estúdios Vera Cruz e Maristela, que buscavam qualificar tecnicamente o cinema brasileiro, tido como tosco. Mas suas inclinações intelectuais e políticas o levaram a novos caminhos. Estudou cinema na França e formou-se na prática como assistente de direção em filmes como “O Saci”, de Rodolfo Nanni, e “Agulha no Palheiro”, de Alex Viany. Em 1953 radicou-se no Rio. Ao morrer, deixa mulher, 4 filhos, 4 netos. E uma infinidade de amigos e admiradores de uma obra de muitas faces.

Em 1955, veio o primeiro longa, “Rio 40 Graus”, que chegou a ser proibido. Diz a lenda, história que Nelson amava contar, que o chefe de polícia o havia censurado sob alegação de que o filme era mentiroso já no título, pois a temperatura jamais chegara a 40º no Rio. O filme recebe a influência do neorrealismo italiano e a acomoda ao hábitat brasileiro. Compõe um painel social do Rio e evidencia a estrutura de classes, dando protagonismo aos oprimidos sociais. Para a estudiosa do neorrealismo, Mariarosaria Fabris, é na obra seguinte, “Rio Zona Norte”, que Nelson afina sua autoria de preocupação socializante, que vai desembocar no Cinema Novo.

Sua provável obra-prima, “Vidas Secas”, viria em 1963. Foi, junto com “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Os Fuzis”, a obra que projetou o Cinema Novo internacionalmente. A história da família de retirantes da seca é narrada em linguagem cinematográfica radical, que comoveu o mundo. Mostrou que no Brasil se fazia um cinema original, crítico e de altíssima qualidade. Esse momento virtuoso jamais se repetiu, pelo menos não com a mesma intensidade.

Com a ditadura de 1964 e a censura sobre as artes, Nelson, e tantos outros, recorreu à forma da alegoria para passar seu recado à guisa de resistência. São dessa fase “Fome de Amor” (1969), “Azyllo Muito Louco” (1970), “Como Era Gostoso Meu Francês” (1971) e “Quem É Beta?” (1972).

Nos anos 1970, Nelson volta-se a um cinema popular com obras como “O Amuleto de Ogum” (1974), “Tenda dos Milagres” (1977) e “Na Estrada da Vida” (1980). Em 1984, é hora de saudar a redemocratização iminente e Nelson o faz com outra visita a Graciliano Ramos. “Memórias do Cárcere” evoca o despotismo do Estado Novo para falar da decadente ditadura iniciada em 1964.

Após o desmonte do cinema na era Collor, conseguiu pôr de pé sua versão de contos de Guimarães Rosa, “A Terceira Margem do Rio”. Depois voltou-se para um trabalho documental (ou semidocumental) com “Cinema de Lágrimas” (1995) sobre o melodrama latino-americano, e “Casa Grande & Senzala” (2000) e “Raízes do Brasil” (2004), tratando de dois “intérpretes” do País nos anos 1930, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque.

Nelson era já uma instituição em 2006, quando foi para a Academia Brasileira de Letras. Tornou-se “imortal”, condição que apreciava muito, como falou várias vezes ao Estado, com seu inalterável bom humor.

Uma nova tentativa de ficção, com o drama político “Brasília 18%” (2006), talvez não tenha recebido a devida atenção. Os tempos já eram outros e novos tipos de cinema ditavam a moda. Merece uma reavaliação.

Quando todos já o supunham aposentado e dedicado ao chá das cinco na Academia, surge com “A Música Segundo Tom Jobim”, extraordinário, sem voz narrativa, valendo-se apenas do monumento musical erguido por Tom. Sai-se do filme com a sensação ambígua de euforia e depressão ao pensarmos no País que poderia ter sido e neste em que agora vivemos.

Aí encontramos, talvez, o fio invisível que liga os elementos dessa obra multiforme: amor pelo Brasil no que ele tem de melhor e olhar crítico sobre suas mazelas, como a injustiça social e a indiferença das elites. Nelson traduziu esse pensamento de fundo em um cinema inteligente, simples, sem poses, livre de afetação e elegante. Assim também era o homem.

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