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Os cadeirantes

Lado perverso da guerra deixa gente mutilada, mas há Hefesto

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Autor/Imagem:
André Montanha - Foto Reprodução/Mitologiagrega.com

Há uma parcela do ser humano estranha – e que se estranha. Esses não são feitos à imagem e semelhança de Deus. Brigam por poder e em nome Dele. Vivem como fratricidas. Matam e se deixam matar em conflitos. Ou saem das guerras mutilados moral e mentalmente. E com membros amputados.

Esses, os sobreviventes, reverenciam um deus mitológico. Atende pelo nome de Hefesto, que, do Olimpo, atua em duas frentes. De um lado, cria armas; de outro, fabrica cadeiras de rodas para quem deixou partes do corpo nos campos de batalha. De todos os males, vale o menor.

Imaginava escrever para Notibras um tema diferente. Mas o mundo em conflito transportou-me à antiga Grécia. Achei Hefesto. E acordei no fim de semana como outros simples mortais, estarrecido com o deflagrar de mais uma guerra. Mas, diante da minha índole pacifista, deixemos de lado bombas, mísseis, sangue. Voltarei minha atenção, portanto, àquele personagem glorificado na Grécia.

Quem acompanha meus textos sabe que sou PcD (pessoa com deficiência). Nasci assim, com paralisia cerebral. Mas nem por isso deixei de lutar pela vida desde que me entendo por gente. E foi com garra que conquistei o que tenho: habilidade como cadeirante, judoca faixa azul, enxadrista, gamer e geek. Agora, com a oportunidade que me foi dada por Notibras, aos poucos vou aprendendo a transmitir com o uso do meu ‘teclado informatizado’, o que penso. São palavras soltas, leves como uma folha de árvore que é levada pelo vento no fim do outono.

Para não perder o fio da meada, volto a Hefesto. Foi ele (respeitada sempre a mitologia grega) o criador da cadeira de rodas. A propósito, ganhei a minha aos 15 anos de idade.

Hefesto, conta a lenda, é manco, por ter uma perna maior que a outra. É o deus do fogo, da metalurgia, dos vulcões, do artesanato em metal. Habilidoso ferreiro, é o patrono dessa profissão, além de ser coroado como rei também por escultores e artesãos.

De sua oficina originaram-se armas e armaduras utilizadas por seus irmãos do Olimpo. Um exemplo é o elmo de Hades, cujo poder dá invisibilidade ao seu portador. Outra invenção notória de Hefesto foram os autômatos, espécie de servos feitos de metal.

Dois atributos bem singulares de Hefesto são sua aparência, considerada bastante feia, e os mitos gregos fazem questão de realçar isso, e ser coxo, isto é, uma de suas pernas tinha o comprimento menor que a outra. Essas duas características são únicas a Hefesto, uma vez que os deuses gregos sempre foram conhecidos por serem perfeitos fisicamente.

Todos os objetos que Hefesto fabricava saíam de sua forja, que ficava no interior de seu palácio de bronze, erguido entre os Etna e Vulcano. Seus símbolos máximos são a bigorna e o martelo, dois objetos fundamentais para qualquer ferreiro.

Não se sabe quando, mas supõe-se que tenha sido bem antes de antigamente, que Hefesto criou a cadeira de rodas, servindo como extensão das pernas de quem tem alguma dificuldade em se locomover. É, portanto, uma ferramenta crucial para os PcD. Com o passar dos séculos, a invenção foi aprimorada.

Montada sobre duas rodas maiores atrás, que servem como alicerce, e outras duas, de menor diâmetro, na frente, a cadeira é utilizada por indivíduos com dificuldade de locomoção (são os cadeirantes, como eu), podendo ser movida manual ou eletronicamente pelo ocupante, ou empurrada por alguém.

Por ser largamente utilizada por pessoas portadoras de deficiência física, é também empregada no símbolo que indica acesso a pessoas com deficiências. Depois de fabricadas, muitas passam por testes a cargo de terapeutas ocupacionais, a quem cabe uma ou outra sugestão para seu aprimoramento.

Com os avanços da tecnologia, surgiram diferentes modelos, a saber: Cadeira manual simples, ideal para quem busca o menor custo; Cadeira dobrável em X (do modelo que possuo algumas); Cadeira monobloco; Cadeira motorizada; Cadeira com elevação automática; Cadeira reclinável; e, Cadeira de rodas para banho.

Há 30 anos (caminho para chegar aos 45 em janeiro próximo) sentei em minha primeira cadeira de rodas. No início, admito, foi um pouco difícil adaptar-me à novidade e com a noção de espaço ao meu redor. Assim, trombava com a minha extensão de pernas para todos os lados. Porém, com passar dos tempos, fui pegando o traquejo e melhorando minhas habilidades no comando das minhas ‘pernas auxiliares’.

Assim vou levando a vida para chegar ao meu objetivo maior – uma Faculdade de Letras. Eu posso, você pode. Basta querer. Quanto à guerra dos homens, deixa pra lá. As batalhas que enfrento se restringem a um tabuleiro de xadrez, onde se perde e se ganha, principalmente o prazer de viver. Sobre Hefesto, apenas mais uma observação: te saúdo, cara. Te peço a bênção. Mesmo porque, se escrevo agora sobre uma cadeira de rodas, é porque tu a criaste.

Post scriptum: Lembre-se que sou o André, uma ‘verdadeira montanha’ de força de vontade. Notibras abriu este espaço para pessoas como eu, como você. O espaço é nosso. Se desejar interagir, mande sugestões, mande seus textos. Meu contato (WhatsApp) é +55 61 98425-4895.

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