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O deprimido

Lápide carcomida faz Argemiro ir para a praia

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Tomaz Silva/ABr

Durante nosso encontro semanal numa famosa padaria de Brasília, o José Seabra me perguntou se, no meu tempo de morador honorário de Copacabana, eu havia conhecido algum habitante que valesse a pena contar algum causo. Logo me lembrei do meu vizinho, o Argemiro. Pois é, o meu chefe aqui no Notibras gostou tanto da história, que até disse que pagaria a rodada de café gourmet.

Argemiro vivia deprimido, independentemente das coisas que aconteciam ao seu redor. Até quando ganhou uma bolada no jogo do bicho, não deixou de lamentar a suposta falta de sorte. É que ele era do tipo que sempre considerava o copo meio vazio ou, então, a galinha do vizinho mais gorda.

Se chovia, Argemiro queria sol. Se fizesse aquele tempo de se esbaldar na praia, eis que ele rogava pra que São Pedro abrisse todas as torneiras do céu. Vivia de lamúrias, como se elas lhe fossem sopros de vida, mesmo que ele desejasse a morte a todo instante.

Carregado de angústias, Argemiro decidiu naquela manhã terminar com tudo. Olhou-se no espelho do banheiro, pensou em fazer a barba. Deixou pra lá tal ideia, até que mudou seu pensamento. Não queria deixar para ninguém a tarefa de lhe passar a navalha na face para dar uma aparência melhor ao defunto.

Escolheu o terno mais apropriado com a aura que o perseguia. Cinza chumbo, tão pesado que os ombros se curvavam. Não suportando mais tamanha tristeza, pegou o ônibus direto para o cemitério São João Batista, ali em Botafogo. Apesar dos inúmeros assentos disponíveis, preferiu continuar no seu calvário, tão firme como um castelo de areia. Manteve-se em pé.

Desceu cinco pontos após o São João Batista. Era questão de honra vencer mais alguns bons quilômetros com aqueles sapatos apertados, dois números abaixo do seu. O sol escaldante batia justamente sobre a sua calvície avançada. A pele do cocuruto estava tão castigada, que o vermelho a tomava por completo.

Decidido, transpôs o portão do cemitério. Queria porque queria acabar com a própria vida diante do túmulo da sua finada mãe. Pensou que ele estaria mais à direita, mas não o encontrou. Caminhou no sentido oposto, mas nada de achar o local do repouso final da sua genitora. Cansado, acabou por se sentar diante de uma lápide, onde havia a fotografia carcomida de uma velha e, logo abaixo, as seguintes palavras: “Tá fazendo o quê aqui? Vá pra praia!!!”

Argemiro não pensou duas vezes. E para Copacabana, onde tirou o velho terno e mergulhou de cueca. Não se tem notícias de que ele voltou à tona.

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