Furtam até dos mortos
Lápides são saqueadas na Venezuela enquanto crise piora
Publicado
emA tristeza tomou conta da venezuelana Ivonne de Gutiérrez quando ela levou flores ao túmulo do filho, em um cemitério em Caracas, e descobriu que as placas dos túmulos de vários parentes haviam desaparecido. As peças de bronze que identificavam as lápides de um sobrinho e duas tias desapareceram desde sua última visita, há uma semana. “Quase todas foram levadas”, disse Ivonne, em meio aos túmulos vandalizados no Cemitério do Leste, um dos principais locais de repouso na cidade.
Ladrões saqueiam cemitérios há anos, roubando pessoas, levando objetos de metal e até mesmo ossos, para uso em cerimônias ocultistas. Mas a onda de crimes piorou à medida que o país foi consumido pela crise política e econômica. Uma avalanche de reclamações nas redes sociais no final de maio fez com que os administradores do cemitério reconhecessem os furtos e anunciassem um plano para substituição das peças por marcações de plástico, material menos atraente para os ladrões.
Desde então, algumas peças foram removidas e não foram substituídas, deixando os parentes sem saber se os túmulos de seus entes queridos foram saqueados ou apenas guardados.
“Isso foi no início de maio, e ainda hoje não sabemos nada”, disse Ivonne. Muitos venezuelanos relataram a falta de resposta do cemitério e a administração do local não respondeu aos pedidos de comentários para esta reportagem.
A Venezuela, rica em petróleo, já foi uma das nações mais prósperas da América Latina. Mas hoje o país vive uma crise econômica com escassez severa de alimentos, remédios e outros itens de primeira necessidade. A inflação descontrolada afundou muitos venezuelanos na pobreza, forçados a sobreviver com um salário mínimo mensal que corresponde a centavos de dólar – ou a recorrer ao crime.
Durante anos, ladrões saquearam as ruas de Caracas, furtando grades de esgoto e fios de cobra, para vender os materiais no mercado negro. Nos últimos meses, cerca de 6 mil peças de túmulos foram retiradas do Cemitério do Leste, disse Nora Bracho, parlamentar de oposição e diretora de um comitê que gerencia serviços públicos.
O número corresponde a uma porcentagem pequena do total de 200 mil túmulos no cemitério, mas tem sido um pesadelo para os parentes afetados. “Esta é a ponta do iceberg”, disse Nora, observando que os moradores também sofrem com a deterioração de outros serviços públicos, como apagões generalizados de eletricidade, escassez de água e um sistema de transporte público avariado.
O Cemitério do Leste é um oásis no meio da barulhenta capital. Falcões-peregrinos e araras-azuis voam pelos ciprestes do lugar. Mas os parentes dizem que a calma foi estragada. “O crime está por toda a parte”, disse a professora Nidia Guzmán, durante visita recente.
Ivonne disse que até agora os saqueadores não vandalizaram a lápide de seu filho, localizada em um canto visível do cemitério. Mas o medo que o túmulo seja furtado ou que os restos mortais sejam adulterados fazem com que ela considere medidas mais drásticas. “Estou pensando em exumar seu corpo e cremar os restos”, revelou. “Não é mais seguro aqui.”