Curta nossa página
nlenfrdeitptrues


O pomo da discórdia

Laura mata dois coelhos com uma cajadada; sem namorado e um novo autor

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Não sou tiete, mesmo quando estava lá com meus 15, 16 anos, nunca tive ídolos, apesar de andar com outras garotas da minha idade, todas apaixonadas por algum cantor ou astro do cinema. Minha mãe sempre disse que, ainda no tempo da creche, era eu uma adulta de fraldas. Certo exagero, mas que talvez retrate um pouco sobre o meu íntimo, reservada que quase sempre sou.

Andei com uns problemas aí. Melhor, os problemas ainda continuam por aqui, enquanto tento lidar com eles de maneira racional. No entanto, por mais que busque seguir o caminho da razão, eis que o coração me faz tomar, vez ou outra, um desvio. Desvio? Não sei se a palavra exata seja essa, até porque fica parecendo que a vida é um jogo de xadrez, que você precisa sacrificar a felicidade para manter os pés calçados.

Descobri que andar descalça não é somente prazeroso, como também necessário. Além de massagear os pés sobre a areia macia, e mesmo que de vez em quando nos deparemos com alguma pedra pontiaguda ou um espinho, isso faz bem para a alma. A saúde mental agradece, e podemos, assim, buscar conforto em outras coisas.

Tenho me alimentado melhor, tenho saciado minha mente de poesias. Nossa, como isso é bom! E você, por acaso, já se deparou com Drummond? Já reparou que Drummond rima com bombom?

Não me entenda mal, mas confesso que tenho me interessado por outro. É verdade que o Carlos continua com seu cantinho reservado no meu coração. E como poderia ser diferente? Amo aquele jeito tímido e, ao mesmo tempo, atrevido desse mineiro com gosto de pão de queijo. Seja como for, confesso que tenho outro. E pode apontar todos os dedos para mim, que aceito a sina de ser culpada.

Antes de revelar o pomo da discórdia, deixe-me contar um pouco como tudo começou. Pois estava eu fragilizada pelo término trágico de um relacionamento, que nem eu, apaixonada que estava, tinha muita esperança de que vingasse. Coisa do tipo de encontro fortuito na balada, mas que insistimos, pura teimosia, esticar para ver onde vai dar. Durou pouco mais de mês, e poderia ir até o final do mês seguinte, caso não fosse por algo bobo, comum e, não obstante, derradeiro.

— Aurélio, o que você tá fazendo com a minha escova de dente?

— Ué, escovando os dentes.

— Que nojo!

Pois é, não tinha como continuar com alguém que mal conhecia, apesar dos tórridos momentos de puro prazer, e que se apossa de algo que é só seu. De tão possessa fiquei, não tive dúvida e mandei o, até aquele momento, amado pegar as suas coisas e ir embora.

— Laura, você é maluca!

Maluca? Eu? Bem, não vou tentar fazer defesa em causa própria. As palavras do Aurélio não me afetaram. Maluca? Creio que ele pegou pesado comigo. Pois maluca é a mãe daquele sem-noção, usurpador de escovas de dente alheias.

Não sei se isso acontece com você, mas quando sinto princípio de desavença interna, busco na poesia o apaziguamento do qual necessito. E foi assim que fiz. Peguei meu Drummond na estante e, em meus braços, o levei para cama. Mas eis que algo me incomodou.

— Carlos, por acaso estou errada?

Mudo, o poeta me encarou de maneira serena. Pior mesmo foi aquele sorriso discreto de canto de boca, como se querendo dizer: “Laura, Laura, dessa vez você pegou pesado!”

— Pois hoje você vai dormir novamente sozinho na estante, seu Carlos!

E lá fui eu para a sala devolver Drummond, o meu amado Drummond, companheiro de tantos anos, o meu mineirinho com gosto de pão de queijo, para a estante de madeira. Que passasse a noite entre Vinicius, Bandeira, Castro Alves e tantos outros. Pensei, de relance, puxar pelas mãos o Casimiro. Muito menino, queria alguém com mais maturidade.

Quase desistindo, eis que vi debaixo da porta um envelope. Hum! Pelo volume parecia algo substancial. Nada de contas e contas a pagar. Tomei-o em minhas mãos e logo percebi que a remetente era a minha grande amiga Sarah Munck, poetisa das melhores. Curiosa, abri o envelope e me deparei com o livro ‘A verdade nos seres’, de Daniel Marchi. Folheei e li a dedicatória.

“Querida Laura,

Tenho certeza de que estes poemas chegarão a você em momento apropriado.

Da sua amiga,

Sarah Munck”

Não quis parecer muito interessada a princípio, já que acabara de ter rusgas com o meu amor de longa data. Entretanto, como quem não quer nada, peguei o Daniel e o levei para meu quarto, onde passei a noite inteira tentando decifrá-lo. Se me sinto culpada por isso? Hum! Quem mandou o Carlos ficar do lado do Aurélio?

………………………………

Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

Compre aqui 👇🏿

https://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho

+90
Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.