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Lava Jato terá descanse em paz ou vade retro?

Já se passaram 12 anos desde a Operação Satiagraha, que pode ser considerada um rascunho da Operação Lava-Jato, deslanchada em março de 2014. Houve também o escândalo do mensalão em 2005, mas ficou restrito à compra de votos. O processo se tratou, portanto, de um fenômeno episódico, sem nenhuma pretensão de eternizar-se, ao contrário da versão brasileira do reich de mil anos com a qual sonharam Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Orgulho-me de haver sido um dos poucos a ter percebido, já em meados de 2008, que estava a ser chocado um ovo da serpente.

Foi chocante para mim a constatação de quão facilmente estava sendo impingida à opinião pública uma versão maniqueísta daquela disputa de facções capitalistas por um nicho florescente do mercado de telecomunicações: apresentavam-na como um filmeco estadunidense de mocinho e bandido, quando, na verdade, estava muito mais próxima daqueles faroestes niilistas italianos nos quais todos eram bandidos.

Pior ainda foi a recaída populista de parte da esquerda, que resolveu alinhar-se com a facção que buscou apoio policial como uma espécie de golpe sujo para prevalecer na guerra concorrencial de mercado, fazendo seus interesses particulares passarem por exigências da Justiça. Nessa ópera bufa, acabou sendo heroicizado um delegado ingênuo que estava sendo usado como laranja por seu antigo superior hierárquico.

Desde o primeiro momento percebi que, entre os dois esquemas mafiosos envolvidos naquele arranca-rabos nas altas esferas capitalistas, a melhor postura era manter a máxima distância de ambos.

Afinal, tendo plena consciência da podridão extrema a que chegou o sistema nesta fase agônica do capitalismo, há muito eu rezava pela cartilha do Paulo Francis: o combate à corrupção era (e é) uma bandeira intrinsecamente de direita.

E também me valeu a base de marxismo que eu, assim como boa parte dos quadros de esquerda formados nos anos 60, possuíamos. Graças a ela, sempre avaliei o combate à corrupção, sob o capitalismo, como um inútil exercício de enxugar gelo.

Porque, enquanto o capitalismo colocar como objetivo máximo da nossa existência o enriquecimento e a conquista de uma posição de superioridade com relação aos demais seres humanos, tangendo todos a verem os outros como inimigos numa competição canibalesca e insana, sempre haverá quem ouse recorrer, para alçar-se acima dos concorrentes, a meios considerados ilícitos pela institucionalidade burguesa. E, para cada um que erra o pulo e acaba preso, há dezenas de outros prontos para assumirem a vaga.

Então, cruzadas policialescas nunca resolvem o problema em definitivo, fazem uma tempestade de som e fúria significando nada (Shakespeare) por algum tempo e depois todos os males ressurgem e os corruptos de ontem viram os próceres do centrão de hoje; mas, enquanto tais cruzadas duram, servem para justificar a imposição de rigores à sociedade, sendo, portanto, um caldo de cultura de Estados totalitários.

Pois totalitário foi o Estado brasileiro durante a ditadura militar, que começou a nascer com o moralismo rançoso das pregações udenistas contra Getúlio Vargas.

O suicídio do caudilho gaúcho evitou o pior em 1954, mas as tentativas golpistas continuaram, quase obtiveram êxito em 1961 e desembocaram, finalmente, num pesadelo de 21 anos (vale lembrar que, além do anticomunismo, a quartelada de 1964 surfava na onda do enfrentamento da corrupção, tanto que chegou a ser enganosamente chamada de redentora).

Assim, quando o combate à corrupção voltou à baila em 2008, fui dos primeiros a alertar que seria uma roubada para quem quer transformar em profundidade a sociedade brasileira e não apenas aplicar-lhe maquilagens temporárias (vide, p. ex., este meu artigo de 2008 e este de 2009).

E em 2017, quando do frustrado complô golpista de Joesley Baptista com a Lava-Jato, o trapalhão geral da República Rodrigo Janot e as Organizações Globo, adverti desde o início que o tenentismo togado nos conduziria a algo muito pior do que o Governo Temer: um Estado policial ideologicamente embasado.

Tivemos a sorte de que, ao invés do bem mais articulado Sergio Moro, quem acabou capitalizando a desconstrução moral do Governo Temer e os erros terríveis que o PT vinha cometendo desde 2013 foi o medíocre e fisiológico Jair Bolsonaro.

Este, empurrado pelos três cuervos por ele criados, até andou acalentando por um ano e meio a ideia de poder absoluto, mas depois se curvou à evidência dos fatos e, lembrando um antigo sucesso de Nelson Gonçalves, passou a cantar música bem diferente: Fisiologia, aqui me tens de regresso/ e suplicante te peço a minha nova inscrição…

O descarte da Lava-Jato era tão inevitável desta vez como das outras em que o combate à corrupção, depois que a direita atingiu seus verdadeiros objetivos, virou letra morta. Ou alguém já esqueceu todas as maracutaias que vicejaram à sombra da tal redentora, inicialmente escondidas pela censura, mas que depois se tornaram amplamente conhecidas?!

Então, a minha sugestão de frase para a lápide da Lava-Jato não é a tradicional Requiescat in pace, até porque nada garante que ela finalmente descanse e nos deixe em paz: a demagogia jacobina que a inspirou sempre poderá ser exumada quando a direita estiver precisando virar a mesa de novo.

Sugiro Vade retro, já que a Lava-Jato tem muita culpa no cartório por estarmos no inferno atual.

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