O manual de boa redação recomenda que o articulista deve observar a máxima: cada parágrafo deve conter um argumento, ideia ou informação. No caso da inacreditável eleição ao comando do Senado Federal versão 2019, há como fazer destaques em cada linha. A maioria são fatos ridículos. Outros são gravíssimos. Mas o mais importante não pode ser perdido de vista: o feudo ruiu.
A mão que era beijada não por amor mas por temor; a mão cheia de anéis que fazia e desfazia a seu bel prazer, até mesmo a Constituição em 2016; a mão que sabia estender-se enquanto a outra recebia o preço da aparente adesão, a mão que apertava segundo seus interesses e que esmagava quando convinha, esta mão consagrada como todo poderosa e inatingível ficou inerte. Porque a cabeça de Renan caiu.
Para não ser derrotado, o candidato à sua 5ª Presidência do Congresso (ou 6ª, se considerar, como muitos, que Eunício era um preposto) ocupou a tribuna para denunciar o caráter antidemocrático da eleição. Nisto, Renan tem razão. Há indícios claros, até mesmo provas de comportamentos autoritários.
Um deles antes mesmo do início das sessões: o secretário-geral do Senado, na manhã de sexta-feira, editou medida que procurava mudar a composição da Mesa, impedindo David Alcolumbre de presidir as reuniões preparatórias, como o próprio Renan Calheiros tinha feito em 2015. A partir daí, cada grupo lança mão de manobras e exploração do regimento interno. Nada novo, faz parte do jogo. A performance circense ficou com a senadora Kátia Abreu e seu apego à pasta contendo o roteiro da sessão.
Além do teatrinho, os observadores atentos e acostumados a pisar no tapete azul ficaram surpresos de ver um Renan Calheiros nervoso, mais estático que de costume na sua poltrona, ladeado por Fernando Collor, com quem atingiu um outro patamar em sua atuação parlamentar (que começou nos anos 80) há quase trinta anos.
O primeiro grão de areia no mecanismo chamado “volta à Presidência” tinha sido o apertado placar da votação na bancada do MDB, em reunião na quinta-feira. O pernambucano Jarbas Vasconcelos não participou, e dos doze integrantes, sete indicaram Renan, mas cinco preferiram Simone Tebet. Se até mesmo os servos mais próximos ameaçavam seu senhor, a situação merecia mais atenção.
O autor, em 1979, de um livro intitulado “Em Defesa de um Mandato Popular” também amargou a completa falta de popularidade. A opinião pública, ao menos fora de Alagoas, não era ponto de apoio do candidato. As manifestações nas redes sociais do #ForaRenan não são novas, começaram pela militância de esquerda, até que a orientação dos governos Lula e Dilma foi de pragmatismo e de “real politik”.
Seguindo à risca os preceitos militares de Sun Tzu, avaliando que que não podiam derrota-lo, aliaram-se ao a alagoano. Por sinal, a queda de Renan e a propulsão ao topo do DEM nas duas Casas Legislativas devem ter sido recebidos com amargura pelos dois ex-presidentes petistas, que pretendiam “extirpar” da política o partido de Rodrigo Maia e David Alcolumbre.
Enquetes feitas com a população, lembradas por Álvaro Dias no plenário, indicavam rejeição superior a 80 %, atingindo até 94 %. Tudo bem que não era o eleitor lambda que havia de se pronunciar (e ainda bem até para Alcolumbre, porque não há dúvida que todas as economias de recursos propostas por Reguffe teriam vencido o voto popular por aclamação). Mas não deixa de ser sintomático que, no meio das declarações de voto dos senadores, nenhum assumiu ser eleitor de Renan. O baiano Jaques Wagner se indignou da prática adotada de mostrar a cédula, e vaticinou que “a Bahia conhecia o valor de sua palavra”. Mas não conseguiu dizer que votava em Renan.
A eleição no Senado ainda renderá análises e questionamentos. O papel do presidente do STF Dias Tóffoli, a fraude eleitoral podendo envolver Zé Maranhão, Fernando Bezerra Coelho (ambos renistas convictos) e o misterioso senador que conseguiu dar voto duplo em Renan. Em aparte, foi notável a atuação de Leila Barros na segunda votação. Guardiã dos envelopes e das cédulas, em pé ao lado do presidente, só entregava a Zé Maranhão os três conjuntos de cada Estado quando os votantes se aproximavam. Com o perdão do trocadilho, para seu primeiro jogo no Senado, Leila brilhou mais uma vez num de seus fortes de tempo de atleta: sacou muito bem.
Analistas políticos previam a frustração de Renan Calheiros. E já o pintam como opositor ferrenho. A carreira do alagoano, representante de seu estado desde 1994 no Senado sem interrupção, pai do governador reeleito, indica uma inteligência e uma sensibilidade política muito além dos padrões comuns. Semana que vem, o tamanho de seu “grupo” e a atuação dele já poderá ser vista. Dentro, e fora do Congresso.
Parafraseando o próprio Renan de 1991, quando pilotou como líder do Governo no Congresso o pacote econômico chamado Plano Collor, “o Brasil mudou em outubro, o Congresso em fevereiro, e quem não entendeu isso vai perder o bonde da história”. Sua condição de Senador lhe assegura a passagem neste bonde. Resta a saber se na primeira classe, ou no compartimento de carga.