No Brasil da politicalha, difícil dormir, acordar, escrever, mandar o Bernardo às compras (quero dizer molhar o biscoito), sem pensar em política. Como política faz mal ao fígado e ao Alain Delon periquiteiro, eu tento. Tenho conseguido porque decidi viver a vida só pensando naquiiiilo. Nada mais do que pensar. Não à toa, desisti de dar aulas de geometria e fundei a Igreja Quadrangular do Triângulo Redondo. Me embrenhei na religião, mas jamais escondi que, nas noites mal dormidas, meu sonho era outro. Ainda pequenino, logo após Pedro Álvares Cabral ter chegado por aqui, me lembro bem que já sonhava gerenciando uma casa de facilidade, daquelas em que, antes de requerer falência, a gente consome o estoque.
Sonhos de uma noite suja de verão bem longe do furacão Milton. Falo de facilidade, pois, mesmo menino, já achava o termo lenocínio grosseiro, na mesma proporção em que, com dez dedos, me avaliava mais esperto do que aqueles que tinham somente nove. Às vezes, pelado em frente ao espelho, jurava que havia nascido com 11 dedos. Besteira. Enquanto pregava no púlpito do quadrilátero arredondado de minha rentável igreja, torcia para que chegasse logo a sexta-feira, dia em que até a virtude prevarica. Na madrugada de quinta-feira, já me imaginava na perdição. A resposta para os necessários carões maternos estava na ponta da língua ou no fim de um dos 11 dedos: “Perfeição é coisa de menininha tocadora de piano”. Tudo a ver com os dedos.
Ao meu pai supostamente severo, dizia que é fácil parecer perfeito quando não se está fazendo nada. Era o caso dele, cujo sonho era fazer o mesmo que eu tinha sonhado para a sexta-feira. O velho era um cara sério, mas, especificamente nessas ocasiões, a falsidade era tamanha que eu me projetava para o Paraguai. Bom mesmo era meu avô, o sábio Aristarco Pederneira. Não havia tempo ruim para o chefe do clã. No calor, ele vadiava. Chovia, punha a galocha para pisar sem medo na casa de Maria do Bolinho, vizinha da construção geminada. No frio, se limitava a enfiar a pantufa no recesso do lar.
Menos sorte teve meu tio-avô Ladislau Pederneira. Mudo de nascença, gostava de cutucar silenciosamente em terreno alheio. E pouco se importava se a areia a ser cavoucada era made in China, isto é, meio barro, meio tijolo, com buraco apenas no verso. Entre os dias de prazer intenso, mas sem gritos, houve um de triste lembrança. Lá por mil novecentos e outubro, a família acordou sobressaltada, mas radiante e feliz com o sucedido. Ainda que monossilabicamente, Ladislau havia falado. E alto. No quarto escuro, pego no flagrante pelo marido da falsa loura, ele sentiu uma mão potente apertando-lhe as glândulas ovais. O sujeito perguntou três vezes quem era o intruso.
Sem resposta, na quarta tentativa, o corno apertou ainda mais os grãos do velho. Agora com as duas mãos. Algo como dois minutos depois dos ovos espremidos, a derradeira pergunta: Quem está aí? “É o mudo, porra!” Dois segundos de grito e meia hora de porrada. Eis a razão pela qual decidi criar a Igreja Quadrangular do Triângulo Redondo. Foi pura birra com o corno das mãos grossas e violentas, também afamado e difamado pastor da Igreja Presbicheriana Daquilo Cor de Rosa. Apesar do boom arrecadatório da igreja, o episódio me desestimulou a cerrar fileiras no mundo sacro. Só pensava no que não pertencia ao âmbito do sagrado.
Sabia que profanar minha alma inocente era uma questão de tempo. Também sabia que a maior mentira do mundo é alguém dizer que o imundo é limpo e o profano santo. Sabia, mas não acreditava. Só acreditei quando resolvi misturar arte com a vida. Foi aí que, fugindo de Milton e de Katrina, me dei conta da profundidade da pintora e escultora brasileira Lygia Clark, para quem o erótico vivido como profano e a arte vivida como sagrada se fundem numa única experiência. Percebi a tempo que o sagrado e o profano eram dois amigos inseparáveis, até que o fanatismo os apartou. Por isso, larguei de vez a dedicação à igreja para me dedicar, de fato e de direito, à minha casa de diversão na Flórida, singelamente batizada de Fados & Fuckings.
*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras