Desde que minha avó materna se foi, nunca mais os Natais foram os mesmos. Ela era a matriarca da família e, do alto de tamanha e doce autoridade, fazia-nos rumar para a farta ceia, sempre posta na enorme mesa de madeira na sala de jantar. É engraçado falar assim, pois hoje moro em um mísero apartamento, onde mal cabe uma mesa para dois lugares na cozinha minúscula. Quanto à sala, além do sofá puído, dorme uma televisão pregada na parede.
De todos os Natais que passei na casa da minha avó, o primeiro que me recordo foi em 1962, quando estava prestes a completar seis anos. Sei porque passei a noite inteira envergonhado por conta de uma coisa que, hoje, me parece tão boba. Mas não devemos menosprezar as agruras das crianças, que possuem lá suas aflições.
Papai estava colocando os presentes no porta-malas do carro, quando me aproximei. Ele sorriu e disse para eu ir chamar mamãe e meus irmãos para não nos atrasarmos para a ceia na casa dos meus avós. No entanto, certamente por curiosidade, quis saber qual daqueles embrulhos era o meu. Meu velho apontou para o maior e, impetuoso que era, quis abri-lo ali mesmo. Meu pai me impediu, mas não antes de eu conseguir rasgar o papel que o cobria.
Não demorou, todos estávamos dentro do automóvel a caminho da festa de Natal. No entanto, meu pensamento era com aquele rasgo feito no meu presente. Será que alguém iria notá-lo? Que vergonha! Eu, que já não era de falar muito, fiquei mudo durante todo o trajeto.
Assim que papai estacionou, fomos recebidos pelos familiares. Beijos, abraços, que até hoje não me recordo, pois não conseguia tirar da mente aquele meu imprudente ato. Por que eu havia feito aquilo? De tão envergonhado, imaginei que todos ali lançavam olhares inquisidores sobre mim. Para piorar, o meu presente, o maior de todos, foi colocado em posição de destaque debaixo da enorme árvore de Natal.
Enquanto meus irmãos e primos ansiavam pela chegada da meia-noite, eu me esgueirava pelos cantos, como querendo que aquele pesadelo acabasse o mais rápido possível. Para piorar, aquele que seria o meu presente parecia me encarar como se querendo dizer: “Lúcio, você deveria ter vergonha do que fez. Olha como todos os outros presentes estão embrulhados. Só o seu que está com esse rasgo. Que vergonha!”
E lá estava eu repleto de culpa quando vovó anunciou que o tão esperado momento havia chegado. Foi uma correria para debaixo da árvore. Em minutos, todos os embrulhos foram abertos, menos o meu, que continuava ali imóvel me encarando. Foi preciso minha mãe me cutucar e perguntar onde estava o meu presente. Abaixei os olhos e chorei. Minha avó percebeu e se aproximou.
— O que foi, Lúcio?
— Eu rasguei o papel do meu presente.
— E daí, meu amor? O que importa não é o pacote, mas o que está dentro.
Levei décadas para entender as palavras da minha avó. Ela era tão sábia. Entretanto, o rasgo naquele papel colorido, vez ou outra, ainda é algo que me perturba.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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