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Lembrando Clemente Luz, pioneiro, que adormeceu e não viu Brasília nascer

José Escarlate

Em uma esquina da 1ª Avenida da Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, o mineiro Clemente Ribeiro da Luz, 38 anos, chegava a Brasília, montando ali sua banquinha de madeira. Nascido em Delfim Moreira (MG), acreditava na cidade e buscava o sucesso. Contava ele que, “em razão de um acidente, que me levou três dedos da mão esquerda ainda em criança, quando fazia “artes” no moedor de cana de açúcar, não fui trabalhar em oficina ou na lavoura”.

José Natal, velho amigo e jornalista muito gozador, inventou que Clemente foi fazer compras na Feira da Cidade Livre. Numa barraca, colocou o polegar e o mindinho que lhe restavam para testar a consistência do queijo de Minas. Irritado, o vendedor falou. “Furou o queijo. Agora tem de levar”. O cara pensou que os três dedos inexistentes de Clemente estavam enfiados no queijo. Clemente nunca contestou essa história.

Filho de família bem humilde, Clemente diz que, pela falta dos dedos, foi “obrigado” a cair no mundo das letras, ainda menino, como conta no livro, “Minivida”. Escrevia cartas para os candangos, analfabetos, com recados para a família distante. Dizia ele que cobrava barato. Tanto escrevia como lia as que eles recebiam.

Nos jornais onde trabalhamos juntos, “Quelé”, como era também chamado, contava mil histórias, como a do operário que lhe pediu para escrever à sua mulher, dando conta que ela já poderia se juntar a ele aqui em Brasília, com as crianças. Explicava que havia comprado 200 sacos de cimento para erguer a casinha. Quando a mulher aqui chegou, esperançosa e com duas crianças, quase caiu para trás. Os sacos de cimento lá estavam. Vazios.

Dizia com orgulho ter sido o primeiro jornalista e o primeiro jornaleiro de Brasília. Além de correspondente da Agência Nacional, distribuía aqui o Jornal do Brasil. Trabalhei com Clemente no Correio Braziliense e na Empresa Brasileira de Notícias, a EBN. Risonho, agitado, dono de uma capacidade de trabalho incrível, era o próprio homem dos mil instrumentos. Escrevia um texto conversando tema totalmente diferente. Cuidava de seus livros e trabalhava em vários lugares.

Era sempre a fuga de um lugar para marcar presença em outro. Mas todos o adoravam. Ele curtia sua paixão por Brasília e pela Rádio Nacional. Diariamente, naquela fase pioneira, depois do Programa do Meira, apresentava a sua crônica da cidade por volta das 11h30 da manhã. Era o preferido dos candangos, que sintonizavam os radinhos de pilha. As crônicas do Clemente tornavam leves e sensíveis aqueles homens rudes. Mostrava sua afinidade com o povo.

Durante muitos anos foi coordenador do Diário Oficial do governo do Distrito Federal, indicado pelo colega e amigo Renato Riella. Ao mesmo tempo, desenvolvia trabalhos literários como cronista.

Foi pioneiro, seguido por Antonio Carlos Osório, Santiago Novo, Joanir de Oliveira e Vera Brant. Clemente Luz fez a primeira crônica sobre Brasília no dia da inauguração, em 21 de abril de 1960.  Tinha crônicas escritas retratando os vários ângulos dos canteiros de obras: o trabalho árduo do candango, o ritmo das máquinas possantes, o entusiasmo, os costumes, o tédio, o lazer, a vida dos pioneiros e da cidade que nascia.

Ao descrever o primeiro Natal da Brasília que nascia, destacou: “Quando soou a hora de ser ouvido o sino de Belém, não havia Belém nem sino… Nos amplos descampados do Planalto, onde as pesadas máquinas marcavam o ritmo do trabalho mecânico e humano dia e noite, naquele instante só existia o barulho da chuva, barulho miúdo, renitente, enervante.”

Seu livro “Invenção da Cidade” traz coletânea das crônicas lidas diariamente na Nacional. Segundo o presidente Juscelino Kubitschek, o livro “é um diário que fala e faz chorar de saudade. Foi feito em prosa, mas é o poema da cidade”.

Poeta, escritor e jornalista, Clemente foi secretário de redação em vários jornais de Minas, Rio e Brasília. Entre suas obras, além de colaborar em diversos periódicos, estão “Minivida”, premiado no concurso literário da Fundação Cultural do Distrito Federal, “Antologia dos poetas de Brasília”, organizado por Joanyr de Oliveira, “Cronistas de Brasília”, organizado por Aglaia Souza, além de “Ombros Caídos”. Adorava escrever para crianças, como os seus “Bilino e Jaca, o mágico”, “Infância humilde de grandes homens”, “Aventura da bicharada”, “O caçador de mosquitos” e “Pedro Pipoca”.

“Clemente Luz foi, para mim” – conta o amigo jornalista Renato Riella, companheiro de viagem de João Paulo II em sua primeira visita ao Brasil – “o exemplo de um alcoólatra que um dia resolveu parar de beber. Parou mesmo – garante -, vivendo mais de 30 anos sem beber”.

Riella, que conviveu com ele durante três décadas, indagou se fora bonita a festa de inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. Mineiramente, Clemente respondeu: “Acredita que esperei tanto e não vi a festa? Não vi nada. Passei 24 horas dentro de um carro, em frente ao Hotel Nacional, inteiramente bêbado. Quando acordei, Brasília já estava mais do que inaugurada”.

Clemente foi um escritor tão importante, que Ziraldo, conterrâneo seu, que era lá de Caratinga, dizia abertamente que resolveu escrever histórias para crianças (Menino Maluquinho!) influenciado pelos livros infantis de Clemente Luz, que leu em Minas.

Numa dessas crônicas, em 1974, Clemente contava que a casa em que morava, na W3 Sul, não tinha trinco. “Entrava quem queria, sem medo de nada”. Na despedida, ficou o lamento: “A cidade está pronta. Bela na sua concepção urbanística e arquitetônica, plantada no chão e no tempo, para a eternidade. Mas não é mais nossa”.

Deixando uma saudade enorme em todos que conviveram com ele, Clemente Luz faleceu em 17 de outubro de 1999.

 

 

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