Outro dia, lembrei-me de quando era (quase) adolescente e colecionava diários. Um deles, especificamente, era o meu preferido: tinha cadeado, chave e compartimentos secretos.
Certa vez, esqueci-o aberto e encontrei minha irmã folheando-o. A raiva que senti foi tanta que peguei o diário, risquei um fósforo e queimei todas as páginas. Minha irmã, desolada, não sabia se ria ou me consolava. Claro que, após alguns minutos, me arrependi. Eu mesma no auge dos meus 11 ou 12 anos.
Essa lembrança me veio quando finalmente li os Diários de Franz Kafka.
Antes de morrer, Kafka (1883–1924), um dos escritores mais importantes do século XX, pediu que todos os seus escritos fossem queimados.
Por sorte, Max Brod, seu amigo e editor, salvou e publicou o que temos hoje.
No entanto, desconfia-se de que cerca de 90% de sua obra tenha sido queimada ainda em vida, fato que aponta para sua cruel e enigmática autoexigência.
Quando estava no Ensino Médio, li pela primeira vez A Metamorfose, uma das minhas experiências iniciais com a poética do absurdo. Não necessariamente com o próprio absurdo, já que viver é esse conglomerado caótico e obtuso, embora inerentemente belo.
Em Kafka, Gregor Samsa vai, pouco a pouco, descumprindo a condição humana para dar vazão ao inseto: um ser estranho, inadequado e isolado. Em respeito a quem ainda não conhece a história, suprimirei os spoilers.
Inevitavelmente, falar sobre A Metamorfose é revisitar o ensaio O Mito de Sísifo (1942), no qual Albert Camus (1913–1960) explora, por meio do personagem da mitologia grega – quiçá o mais esperto dos mortais -, o absurdo como resultado da dialética entre o desejo humano por ordem e propósito e a irracionalidade, isto é, a ausência de sentido da existência. Para Camus, a resposta ao caos está na aceitação ativa dessa falta de sentido e na rejeição de soluções transcendentes. Assim, o ser humano, apesar do absurdo da existência, pode viver plenamente, ao abandonar justificativas externas e abraçar a própria vida terrena.
Quando reflito sobre o absurdo e sobre o mesmo absurdo da minha história, descubro que não devo riscar mais nenhum fósforo. Vou deixar apenas que a chama venha.
Escrever nos permite reconhecer nossa finitude e, ironicamente, explorá-la infinitamente. Mesmo sem nenhuma interpretação definitiva, a palavra nos presenteia com a docilidade da presença. É realmente encontrar um lar e sentir-se em casa.
Sei que todos os artistas, sobretudo as poetas e os poetas, também se sentem assim.
Mesmo observando contradições e alienações, o verbo, uma vez mais, se faz língua, e as experiências individuais se transformam em narrativas compartilháveis.
De repente, o absurdo cria em nós uma malha perceptível e permeável.
A literatura é, portanto, esse grito contra o silêncio do universo, sua magnitude e mesquinhez. E, de repente, voilà: há beleza no caos! É possível torná-lo irresistível e habitável. E há algo absurdamente instigante em vesti-lo, como uma grande manta de algodão em dias frios.
É como pegar aquela manta da infância, guardada a sete chaves no baú da mãe.
A traça fez um belo degradê, e a cor se tornou um borrão, estilo A Paixão Segundo G.H. (1964).
O tecido, portanto, misteriosamente confortável na animalidade da lembrança e na linguagem do silêncio, ainda aquece.
Portanto,
se aqueça
mas nunca se esqueça
de que é sempre uma boa hora
para rolar os fios.
Até breve.