Luciana Moraes é poeta carioca, autora dos livros “Tentei chegar aqui com estas mãos” (2022, Ed. Isto Edições) e “Flor de sangue” (2024, Ed. Libertinagem). Ela já apareceu aqui em Notibras, com seus belos e vibrantes poemas. Desta vez concedeu-me esta profunda entrevista, que compartilho com os leitores:
A poesia pode ser uma ferramenta poderosa para expressar emoções e pensamentos complexos. Como você usa a poesia para processar e comunicar suas experiências emocionais e intelectuais?
Para mim, existe um simbolismo que move o signo escrito, algo que sempre investiga (sonora e imageticamente) a possibilidade de enunciação e ampliação de nossa identidade, como uma “câmara de ecos” de Waly Salomão (poema presente em seu livro “Algaravias”). Assim, ele dizia: “Agora, entre meu ser e o ser alheio / a linha de fronteira se rompeu.”
Sob meu olhar, a poesia vibra, sem fronteiras e gêneros, em diferentes sonoridades, em versos funcionando por (des)construção dos sentidos, metáforas, com o desejo de resgatar alguma magia e potência, em sintonia com aquela “voz corporal” do teatro artaudiano. O exercício poético serve, nesse sentido, como uma reentrância, concavidade inconsciente que recebe o “verbo ansiado” e dá a luz ao “filho que vem do instante/união do brilho com o breu” (versos do meu poema “grútero”, presente em “Tentei chegar aqui com estas mãos”). Ou seja, esse é o meu trabalho, aperfeiçoamento constante: a verbalização como um instrumento escritural por nosso não apagamento histórico, latejando no corpo.
A poesia habita no entrelaçamento das sensações do corpo. Ainda que haja um persistente “estado de desencaixe social” sentido por mim, acredito que os polos opostos se aglutinam na escrita e criam “ponte” com a vida ao redor, em linguagens diversas, como as “folhas vivas”, o “abraço folheado” e o “devir-ser-finca” (presentes no livro “Flor de sangue”).
Talvez seja uma lírica da natureza, não tanto conhecida, mas que condensa questionamentos e presenças por neologismos, anáforas e outras figuras de linguagem; entre parênteses e outros sinais de pontuação, alguns riscos da linguagem que podem ser indícios de novas formas de vida se criando; pela linguagem rítmica que sente a natureza, ao mesmo tempo que pretende conhecer melhor a natureza de nossas ações e as ações da natureza em nós – em consonância com o que Baruch Spinoza refletia acerca da consciência entre a ação e liberdade humana: os dois elementos fundamentais para a existência da ética. Sempre penso na poesia com ética e estética.
Qual é o papel da memória em sua poesia?
Cuidar do espaço próprio, por meio de cada um dos sentidos, em diálogo com a vida e com as obras de arte, transitar por entre as atmosferas da solitude e solidão. Para mim, a memória tanto existe pelas recordações entranhadas, quanto pela intuição e percepção do vivido em cada momento presente. Memória é tocar no fundo do silêncio da falta e dar voz a um novo desejo de exprimir nosso olhar autoral, no sentido daquele que protagonize a poética em sintonia com as transições dos dias. A memória é recomposição contínua, pelo anseio por reencontros com a vida, no presente. Recordo minha história com mãe, o percurso delicado da saúde, com a instabilidade respiratória e o processo do adoecimento, tão difícil. Todo o desejo de sopro de vida, da poesia, era para mim, para ela, o gosto do viver, ante as iminências do porvir. Percebo que esta necessidade singela, com todas as sensações no corpo, permanece em mim e em minha tessitura poética, entremeada por poemas que abraçam e outros que subsistem pelo questionamento vital.
A memória talvez busque a conscientização de nossa humanidade, diante da beleza e da fragilidade, em cada rasgo da perda. A memória como uma convocação à vida que sai pelos poros. Tanto água quanto sopro. O que fica em nós. A dor e a beleza do não saber mais. A escrita vive nessa reconstrução, com a solitude, mas também com o ânimo do próprio sopro (em diálogo com a “Vida das plantas”, de Emanuele Coccia), se fazendo presente quando nos desabituamos de alguma rotina e habitamos em outro ”espaço”. Este outro “espaço” é uma memória que se reinventa com a linguagem.
Por exemplo, pelo escavamento dos arquétipos da Mulher selvagem, com o livro da Clarissa Pínkola (“Mulheres que correm com os lobos”), percebo a multiplicidade de formas que a mulher pode assumir, desde os primórdios da história do inconsciente, como mulher-loba e mulher-árvore: “Ela é a força da vida-morte-vida; é a incubadora (…) Ela estimula os humanos a continuarem a ser multilíngues”. É nesse sentido de multilinguagem e metalinguagem que persisto em minha memória-escrita, onde recomponho o passado e o presente, fissurando a cronologia e linearidade das noções humanas. As potências fêmeas perpassam o meu registro poético e permanecem nas elaborações do meu amor pela linguagem (e pela admiração da força materna). As histórias particular e coletiva vivem em constante movimento, e as vejo como pássaros transitantes na ventania, pairando entre a revolta e a resiliência, porque somos seres atravessados pelas mais variadas emoções diante daquilo que nos é inesquecível, por ser também paradoxal.
Você tem algum poeta ou escritor que seja uma grande influência em sua obra? Como a leitura de suas obras afeta sua própria escrita?
Hilda Hilst, com “Cantares” que nos servem de acesso ritualístico à poesia. A vivência corporal de sua escrita só me faz confirmar como é envolvente aquilo que há de multilinguagem na língua e no fazer poético.
A sinestesia de um verso, “verso escuro”, com outro, “barcas carregando a vida”. A imersão em sua obra me coloca diante de experiências sensórias variadas, reverberando associações entre: nascimento, paixão, cumplicidade, desespero, admiração, fugacidade e consciência do “ser-mortal”.
E nesse sentido, sempre me recordo de Kafka também – escritor mais que especial, pela peculiaridade e desconcerto de suas palavras – que me marcou desde o ensino fundamental, com seu livro “Metamorfose”. A poesia vive, para mim, nesse “desmembramento” ou “desdobramento”, pelas tentativas de reescrita narrativa, bem como ele dizia, em resistência: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”.
Ambos, acredito que me provocaram interesse desde sempre, pela desestabilização da linguagem, por ressaltarem o poder da animalidade em nós, desejante de uma outra humanidade, mais presente e viva. Mesmo que nem sempre conscientemente, eu tendo a partir dessa atmosfera partilhadas por eles, tanto na vivência de ser “caça” quanto de ser “caçador”. As fronteiras se borram, no campo ampliado dessas escritas que “põem em xeque” a ideia de um “eu” apenas. Fazemos parte de um todo; por meio de cada personagem e eu-lírico, “atravessamos as grandes espirais” hilstianas.
Partindo da ideia de “desnudamento da escrita”, com a crueza da voz urgente de Hilda Hilst, que diz ao leitor para olhá-la com menos altivez e com mais atenção, posso realmente sentir essa outra vida líquida, se descortinando na poesia, desentranhada, em diálogo com a fome de viver em presença, entre texturas, palavras, línguas e aromas. Sua trama poética guarda cantos e desencantos, de eros em movimento e questionamento, nos diferentes estados do eu-lírico. Por isso, me vejo envolvida e dialogando com sua escrita, principalmente com meus poemas “Recomeço portátil ou derivação kintsugi” e “Sim”, imersos nessas “grandes espirais” do desejo de renovação.
Se você pudesse escolher um lugar ou ambiente que inspirasse um novo conjunto de poemas, qual seria e por quê? Você já teve alguma experiência que tenha desencadeado uma onda de criatividade em sua escrita?
Praia, provavelmente, seria a opção que escolheria. Geralmente, a onda de criatividade ocorre quando menos esperamos. E assim foi, para mim, em momentos tanto de alegria quanto de tristeza. Principalmente no momento posterior à pandemia, quando estava retomando à vida social, mas vivenciava o luto antecipatório, por conta do agravamento da saúde de mãe… A criatividade, de forma intensa, substancial, foi quando eu acordava na poltrona do hospital, olhava para o céu, tão lindo, logo que amanhecia, e via aquela aurora tão peculiar numa janela lateral… Entre as cores rosa e lilás. Por questões de minutos, as nuvens, de fato, estavam lá, convidando todos para uma experiência de encantamento, de esperança, mesmo naquele espaço (infelizmente de dor, de forte desencanto). Lembro de eu ter dito algo do céu para ela, além do registro que guardei em foto. E um poema, acabei produzindo, durante aquela experiência luminosa, de um dia nascendo (“tão inaugural”) – que invadia a visão, irrompendo em tudo.
Os momentos falam por eles mesmos, por isso, não é tão simples de verbalizar, mas os cenários são os mais variados, conforme vivemos “com o corpo no mundo”, e as inspirações se entrecruzam, literalmente pelos movimentos no cotidiano, inspirando, transpirando, sentindo, por vezes, à flor da pele o “mistério do planeta”. Neste “jogo de cintura” e originalidade de ser quem se quer ser, tão poeticamente presentes, na música dos Novos Baianos.
Qual é o significado da intimidade em sua poesia?
Ela é uma necessidade de partilha de tudo aquilo que há de peculiar, especial e sensível entre os seres vivos. Pelas multiplicidades sensoriais que as palavras guardam. Seja por meio do delírio ou da consciência, ela vive pelos desdobramentos de uma força “particular” exteriorizada; nesta semeadura verbal, não se ignora as evidências da natureza da linguagem e das origens dos sentidos na pele. A reinvenção da poesia vem por esse fator de intimidade, por querer ser cúmplice desse mistério, entre as perdas e os ganhos do caminho. Como dizia Henri Michaux, “todo traço é uma cicatriz”. E, assim, justamente para mim, a comunhão pela qual a poesia anseia nunca cessa de ser convocada em nós, através um olhar mais aprofundado e contemplativo, pelo traço que delineamos continuamente no pensamento, simbolizando a expressão do nosso íntimo estado no papel, no mundo.
Portanto, a intimidade é tudo aquilo que deseja reaprender a comunicação com a vida. Em sintonia com a filósofa Anne Dufourmantelle, eu diria que esta palavra integra as “Potências da suavidade”. Aquele que experimenta o não saber e o saber num conjunto, se aproxima desse íntimo, se familiarizando com o desconhecido. A intimidade não é exatamente o que se guarda, mas o que se expõe principalmente, nas escolhas, na linguagem. É como querer estender uma rede, torcendo pelo melhor cenário possível, e fazendo-se possível em seu ritmo próprio. Um misto de humildade com animalidade. Ela vive, aflora quando o tempo poético e a voz do âmago dialogam entre si, com o desejo de participação contínua entre outros seres; ela é o que escapa, mas o que também se resgata, por seu desejo de organicidade sincera.
Como Luciana Moraes se descobriu escritora?
Para mim, a escrita funciona como um meio de revisão crítica da vida, um trajeto em que se tateia objetos conhecidos e desconhecidos, entre a memória e a imaginação, com o desejo sinestésico do olhar. Como uma recordação das palavras mágicas que se embrenham na nossa eterna casa de infância e trazem algo novo para o presente, na leitura em presentificação ou transfiguração do que vivemos. Há muitas histórias na passagem do cotidiano, vibrações no corpo que transita entre as possibilidades de apreender as muitas identidades sociais, incorporando-as posteriormente, sentindo-as nas vielas do poema.
Desde pequena, quando comecei a pensar sobre a tentativa de recriar minha história (talvez 10 anos), a partir de algum incômodo, busquei inventar diálogos com realidade, com a natureza, ao meu modo, com diários por meio de anotações em caderninhos ou pedaços de papel. Era mais uma espécie de catalogação do que ocorrera no dia. Mesmo assim, a escrita da poesia já existia antes, de um modo intrigante, pelo estranhamento nos pensamentos, diante de situações diárias; e ela foi algo que veio com o tempo, de forma mais concreta com a observação dos momentos dos dias, mas também pelas descobertas com grupos de escritores, presencialmente e online. Por isso, considero que comecei a escrever mesmo, reconhecendo melhor a minha voz, me definindo mais como autora, em 2016, com 23 anos.
Fale-me um pouco sobre sua formação profissional/acadêmica.
Em 2021 finalizei minha graduação em Letras (português-literatura) pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), um espaço que ampliou bastante meu olhar crítico, provocando em mim várias reflexões sobre a vida e as artes. Recorrentemente, em cada trajeto de saída e chegada na Urca (bairro carioca onde se situa a universidade), havia um desejo de transfiguração da minha história pela linguagem. Tanto pelos desafios particulares, durante a época de estudo, quanto pela própria vontade de rever conceitos e produzir algo novo, com uma vivência literária crescente.
Revisão e tradução eram os caminhos que eu desejava, até pelo momento de lockdown pandêmico em que vivíamos. Eu mantive minha intenção de viver mais o universo literário, nas minhas possibilidades de intersecção dos conteúdos e abordagens com novos grupos, após minha experiência acadêmica. E assim, persigo novas oportunidades com a “palavra-corpo” traduzindo sensações e poéticas, por meio de estudos nas áreas da literatura, do audiovisual e da performance.
Como surgiu seu primeiro livro, que tão intimamente dialoga com as artes?
O primeiro livro foi sendo maturado durante o processo de enclausuramento da pandemia, mas vale ressaltar que, um ano antes, eu já tencionava criar um projeto com poemas de diálogo ecfrástico, inspirada numa disciplina da faculdade: “diálogos interartísticos”. A palavra “ecfrase” deriva do grego “ekphrasis”, que significa descrição. Indo na contramão da doutrina horaciana do “Ut pictura poiesis” (“o poema é como um quadro”), na qual justamente está inserida a ideia de descrição pela mimesis, eu deixo meu exercício poético estar entre a descrição do visível e do invisível, como quem segue numa corpografia do entretempo, no intuito de ressignificações.
Quatro palavras-obsessões do meu fazer poético são: tempo, memória, corpo e voz. Elas são constantemente revisitadas, por meio de uma autocrítica que repensa conceitos pela experiência e experimentação (tensão dos sentidos e interpretações). Venho desenvolvendo “traduções intersemióticas”/“diálogos ecfrásticos” há alguns anos. Como uma pintura verbal que pode se associar a diferentes formatos visuais, pela dança do pensamento: mãos que são flores, fios de cabelos como linhas de estações subterrâneas, ritmos que são passos nas ruas, pássaros e constelações que giram nos olhos etc.
Procuro os caminhos da escrita como a atmosfera clariceana de Um sopro de vida: “Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina”. É este desejo de um ato dialógico, tecendo uma escritura de um tempo com outro, no sentido de transgredir as representações do mundo que escondem o mal-estar cristalizado, para provocar uma dissolução dos padrões de linguagem. O “gauche” de Drummond é uma ótima referência que envolve o meu olhar autoral, esse estado do ser que se move na escrita compreendendo-nos como “bichos da terra”, na busca pela “insuspeitada alegria” no possível “acorde do violetempo”.
A escrita funciona no livro como uma revisão crítica da vida, um trajeto em que se tateia objetos conhecidos e desconhecidos, entre a memória e a imaginação, com as artes visuais e a sinestesia no olhar. Tateio o que está por trás do “Objeto gritante” clariceano (uma das versões anteriores da obra “Água viva”. Como Bachelard (em “A poética do espaço”) analisa a poética associativa de “Iluminuras”, de Rimbaud:
“Quando damos aos objetos a amizade que convém, não abrimos mais um armário sem estremecer um pouco. Sob sua madeira roxa, o armário é uma amêndoa branca. Abri-lo é viver um acontecimento da brancura.”
Esta permanente busca por um “princípio de mundo” em mim, como um “alvo grito de rapina”, parece estar em sintonia com o que tropicalista Waly Salomão também dizia: “tenho fome de tudo que não sou”. São muitas as histórias, na passagem do cotidiano, e as possibilidades de apreender suas identidades sociais fazem parte do nosso aprendizado poético.
Percebo que “Tentei chegar aqui com estas mãos” foi uma “travessia intermídias”, pelo deslocamento do olhar, imerso nos instantes do escrever-pintar clariceano, na ideia de metapicturalidade (imagens de obras artísticas ou outras imagens em presença, por um efeito de descrição pictural), a partir de minha leitura de “Água viva”. Os textos de Clarice possuem diferentes estados, identidades, e de modo semelhante, meu livro assume modos variados de estar no mundo (entre o ser animal, vegetal, humano, inumano), em diálogo com os dias que passam. Trato de questionamentos similares ao conto “O ovo e a galinha” e à obra “Água viva”, por querer a captura da sombra por trás das palavras e objetos, deixando os significados mais fluidos e subjetivos.
Se eu pensar nas provocações incendiárias de “Manchar a memória do fogo”, de Raquel Gaio (que me moveram na confecção do meu livro, nas possibilidades de magnetizar e costurar ideias de poemas díspares/semelhantes às obras visuais que selecionei para criar o diálogo ecfrástico), é possível lembrar que seu livro nos faz deslocar o olhar a todo momento, como se atravessássemos o animal em nós, e seguíssemos com ele. Na perspectiva poética de um deus fragmentário, multiplicado num espelho às avessas, com relampejos em trajetos sem demarcações claras, pelos capítulos da vida, tocando com o corpo e a voz, muitos aromas e texturas das línguas de fogo de nossa origem. Sem pudor, fazendo delas a morada na palavra, eu também persisto no movimento de adentrar as chagas de nossa história individual e coletiva, em diferentes prismas. Assim, vamos habitando o caos da linguagem fêmea, com toda a escuridão que movimenta nossos sentidos guardando saberes sutis que lutam pela não estagnação, diante do absurdo tempo em que vivemos.
Na contracorrente do tempo linear ocidental, busquei conhecer um pouco mais as línguas do tupi, yorubá e maxacali, me aliando aos seus tempos espiralados. “Tapuató”, por exemplo, presente num poema, significa descobrir. Minha escrita tende a ser essa busca por novos itinerários e horizontes, diante de nossa sociedade fraturada. “Tentei chegar” é a reescrita poética em diferentes versões de si mesma; água-viva que se regenera entre “presenças-ausências” e “paisagens sonoras”.
Qual foi a inspiração para dar unidade aos poemas que compõem seu segundo livro?
A poesia, para mim, reflete acerca dos humores e rumores de cada tempo, de cada época, não como uma interpretação decisiva dos fatos. Poesia é composição oposta à doença, pois cuida de um outro estado mental, do inevitável ato de liberdade do pensamento, do rompante com um “eu” apenas, com o prazer e o desprazer, funcionando em cada momento em que se elabora novas imagens e experiências com a realidade, dialogando, desconstruindo e reconstruindo a narrativa, imersa numa opinião autônoma, diversificada em associações críticas. Como a coletânea “Escrever”, de Marguerite Duras, a linguagem escrita se abriga em muitas conexões, como um estado de pulsar no “coração da casa”, naquilo que há de sanguíneo, nas aproximações (das mais sutis às mais gritantes) do estado de atenção aos acontecimentos da vida. Como é perceptível em seus ensaios, a fusão da potência existente na solidão com outras formas de ver o amor, entre a sensibilidade e a violência, na linguagem viva que compomos, seja junto aos outros, seja também quando sozinhos (quando nos permitimos tocar no desconhecido, defendido por Duras).
Assim, persigo em “flor de sangue” o sublime do subliminar, a beleza do que é simples, como o andarilho, no último tópico de Nietzsche em “Humano, demasiado humano, envolvido por seus caminhos reflexivos na História, no sentido de viver uma “filosofia da manhã”, ou seja, viver sempre aquilo que guarda “a ilógica relação fundamental com todas as coisas”.
Os seres autotróficos, as plantas, nos ensinam sobre a existência possível a partir do próprio alimento que compõem. Desse modo, me inspiro na ideia de autopoiese: “criar a si mesmo”, pela etimologia, e entendida por Humberto Maturana e Francisco Varela, neurobiólogos e pesquisadores, como uma operação cognitiva construída social e comunicativamente. A “flor de sangue”, assim como muitos livros de poesia, literatura, obras artísticas, vêm como um fruto gerado por minhas inquietações e sonhos. A realidade que existe diante de nós e as reflexões a partir dela nos desconstroem e reconstroem, em movimento, como uma dança-ritual, pelo consciente rito em nossos dias.
Ao mesmo tempo, também me interesso pela escrita peculiar e irônica de Robert Walser, tendo dedicado a primeira seção do livro a ele. E com leituras de livros como “Oniá: um lugar cintilante”, de Vicente Franz Cecim, é possível pensar e viver uma poesia, pulsando na complexidade e suavidade , que se alarga numa dimensão para além do visível. Com seu território além-Amazônico, do “Andara, o livro invisível”, na experiência de sua caminhada na natureza, e frente ao desconhecido de tudo. De modo semelhante me vejo neste “espaço-entre”, em outras linguagens a serem descobertas, como as serpentes entranhadas na terra e na selva; o espanto do ser em cada espaço, na escuta dos outros seres, a roda de samsara, os ouroboros, desde os primórdios das narrativas, como que nos questionando sobre as possibilidades de uma vida que se manifeste mais pelo ato de agregação do que desagregação. Um mundo de signos e significados que prefere dar reformulações poéticas à vida, para que não vivenciemos apenas o relato jornalístico dos acontecimentos.
Emanuelle Coccia, nos expõe uma importante questão: a casa onde habitamos também nos habita, com toda particularidade que há em cada “objeto-sujeito” e pessoas conosco. Existem muitas linguagens, personalidades, universos que se procriam numa morada, e por isso, é preciso nos atentar para o modo como criamos nossos hábitos, como escolhemos ou não escolhemos conscientes a nossa administração de energia (seja pela comida ou pela interação com cada ser). A linguagem que performamos vai moldando o nosso “habitat”, ou seja, a conexão ou a desconexão com o nosso interior vai definindo o que é a linguagem do “morar e do ser-morada”. A energia continua se propagando enquanto estamos vivos e enquanto sentimos o que há nessa interrelação, ou ainda, ela existe, mesmo que possamos não a sentir em alguns momentos. Contudo, o pensamento sempre atravessa a rede neuronal do cérebro e vibra de diferentes modos pelas células do corpo todo. O corpo se “pensa-sente” pelo movimento, se reconhece enquanto há presença, mesmo que “micropresenças”. Isso tudo tende a desembocar, naturalmente, na
escrita.
Em diálogo com Heidegger e Coccia, a “Flor de sangue” surge desse desejo de reinvenção, de participar da totalidade do mundo, como uma viagem que aflora em nosso olhar. A flor que não é ornamento, que conhece as outras virtudes, como está na poesia de João Cabral; uma labuta interna, na lama, nas fezes. É preciso adubar a vida. Como quem deixa tocar um tape, gravador de tape que jamais foi usado, do ano de 1984, e deseja habitar em comunhão com a História, pela comunicação e surpresa.
Através da ideia de morada da linguagem, interligando-se aos autores Emanuele Coccia e Ailton Krenak, é preciso pensar na palavra como um alimento, mas também sujeito-morada nossa, na medida em que vivenciamos sua energia em nós, ou para além de nós. E ingerimos a vida, não só com as relações humanas, mas em cada parcela da morada que desvendamos em nossa tessitura de linguagem. O silêncio também diz muito. Entre o que não há e o que poderia haver. As energias poderiam saltar para uma performance em comoção. Qual? Como? Vivem na pergunta, pelos poros.
Naquilo que se comove pelo movimento, naquilo que traz semente e planta. Planta. Às vezes, nas micropresenças, podemos viver essa comoção.
Com o “mar-rom” que perpassa “Flor de sangue”, buscando uma ritualística que retumba independente de nós, livremente na morada da minha linguagem, eu dedico a obra à minha mãe, a Nina Simone também, e a tantas outras mulheres corajosas que viveram no limiar, nos espaços-entre, no possível e no impossível, frente às diferentes adversidades e ao câncer, e emanaram o calor de uma voz que dança, por provir do sol, das forças antagônicas da criação “mar-rom”, intracorpórea e extracorpórea.
A “flor de sangue”, que realmente existe, é uma planta que serve para muitos tratamentos de saúde, como hidropisia e feridas mal cicatrizadas.
No entanto, pelo que é dito, faz-se necessário alguns cuidados com o bulbo, uma vez que ele contém substâncias nocivas, e pode provocar a morte se for manuseado inadequadamente. Desse modo, com a ideia de estagnação e redenção, alívio e aniquilação, vejo a simbologia no sangue, nas flores e nas mãos, que pretendi colocar nesta pequena obra.
Ela está em sintonia com as reflexões de Deleuze e Guattari sobre o “Corpo sem órgãos” artaudiano, na perspectiva da desterritorialização do corpo. Além da visão de “heterotopia” foucaultiana – a flor de sangue, para mim, faz parte desses espaços materiais e subjetivos que não se enquadram no status quo, normas sociais do autoritarismo. Ela vive no embrionário, no que se reergue, pelas cinzas, pelo adubo, pelas mãos que cuidam de um novo espaço. A neurodivergência saúda a flor que carregamos dentro de nós.
Tem novos lançamentos ou atividades em vista?
Haverá um evento de bate-papo sobre autismo e mulheres, onde eu, Betine Daniel e outras possíveis autoras estaremos também com livros de poesia, para um debate final (“encontro com escritoras”, na Casa Sebo 11, em Laranjeiras, RJ, no início de 2025).
Futuramente, penso em uma plaquete relacionada a um elemento da natureza que vem me instigando. Outra plaquete, com um projeto de tradução no qual tenho pensado. Uma possível antologia neurodivergente por vir, também, em sintonia com algumas autoras interessadas.
Em suma, eu gostaria de pensar e pesquisar mais sobre as possibilidades de desconstrução das poéticas neurodivergentes, sejam elas produzidas em outros formatos de livros/exposições de arte/multimídias/centros culturais, sejam elas presentes no âmbito da dança/performance.
Aproveitando que vem surgindo mais oportunidade para a voz das mulheres, além dos movimentos sociais que se interligam a nós.
Como se trabalha no campo da literatura e se pensa acerca da atenção para com a escrita, partindo da ideia do “autismo leve”, em sua perspectiva?
Sob esse aspecto, a atenção para com a escrita significa, para mim, sempre querer estar viva para aprender com as sensações e tensões do dia a dia, ajustando o olhar ao redor e ao mundo interior, produzindo novos sentidos, recobrando os sentidos, com sonoridades poéticas imaginadas: retirando a “atmosfera do embotamento”. Pois poder aflorar a voz e aperfeiçoar a linguagem é como andar de bicicleta. Com tensão e distensão nos mexemos, enquanto o redemoinho circunda, sem sabermos o que virá. Mas a voz permanece e se faz valer.