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Rancor

Lia, que lia Fê, deixou de ler depois de levar três tiros

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Viver é muito perigoso, observou Guimarães Rosa. E descartar um contista, então, nem se fala. Fernando, um jornalista aposentado de 72 anos, escrevia contos que postava no Facebook. Nas horas vagas, garimpava velhos amigos nessa rede social (a única que usava).

Numa dessas bateadas, reencontrou Lia, uma amiga da adolescência. Não tinha notícias dela há mais de 40 anos. Pediu amizade, ela aceitou e começaram a conversar; em pouco tempo chamava-o de Fê, que nem antes. Ele escreveu que escrevia contos, ela postou que tinha 68 anos (ele havia calculado 70), era viúva, professora aposentada, e “pintava, pintava, pintava”. Ele reprimiu a custo piadinhas de duplo sentido do tipo “você pinta como eu pinto”, e a conversa continuou.

– Sabe, Fê – observou Lia a certa altura –, você deu sorte de eu olhar o Face. Passo meses sem entrar, é pré-histórico!

– Que rede você mais utiliza?

– Instagram. É nele que posto imagens de minhas telas.

– Lia, acho que você vai ter de visitar o Jurassic Park pra ler meus contos. Estão todos lá, aguardando seus zoinho…

Ela riu e prometeu que leria.

Logo que terminaram a conversa, Fernando procurou por Lia no Instagram e passou a segui-la. Foi direto para as pinturas dela – e ficou de queixo caído. Nada de naturezas-mortas ou retratos de netinhos, como ele imaginara: eram telas grandes, pinturas magníficas que mostravam cidades na linha do horizonte, erguendo-se sobre o mar ou sobre o deserto.

– Ela é boa pra dedéu. Mais criativa que eu – falou consigo mesmo.

Uma pequena nuvem negra, carregada de inveja, escondeu por momentos o sol do reencontro com a amiga, mas logo se desfez. E o retorno de Lia ajudou a dissipar qualquer migalhinha de despeito:

– Adorei! Você escreve bem pra cacete, Fê, textos muito gostosos de ler. Vou comentá-los.

Ela cumpriu a promessa, ele se derreteu. Talvez por não ser “literária”, Lia olhava os contos com um frescor que faltava à maioria do(a)s leitore(a)s. Desenvolveu-se entre os dois uma amizade não beletrista, sem a menor conotação sexual, nascida da partilha de um texto bem escrito. Além de postar observações originais, a velha/nova amiga mandava sugestões pelo zap (haviam se adicionado no WhatsApp fazia tempo), comentava que determinado conto poderia ser maior (ele em geral atendia, criava uma segunda versão), dizia que estava na hora de ele encarar a escrita de um romance (ele fingia que não entendia), coisas assim. E a vida seguia risonha e franca nesse reencontro.

Três meses depois da garimpada inicial no Face, porém, Lia sumiu. Fernando resistiu uns quatro dias, até postar no zap:

– Lia, o que houve? Não gosta mais de meus contos?

– Oi, Fê, estou noutra vibe. Ganhei de presente as obras completas de Guimaraes Rosa. Estou lendo, meio desesperada porque desprezei por tanto tempo esses textos maravilhosos. Também ganhei um Kindle. Fiz uma conta na Amazon e compro livros direto do Kindle. E então, contos, que nunca pertenceram ao conjunto de obras que gosto de ler, ficam apagados da minha memória. Por enquanto estou lotada de leituras. Até diminuí a pintura! Mas andei vendendo!! Vá em frente sem meus olhos. Você tem seu leitor cativo!

Guimarães Rosa? Isso era covardia! A nuvenzinha negra retornou, agora carregada de inveja, despeito e ressentimento. Ele simplesmente adorava Guimarães Rosa, mas não tinha ilusões quanto a disputar com ele, cabeça a cabeça, em termos de talento e domínio de linguagem. E a observação de que contos “nunca pertenceram ao conjunto de obras que gosto de ler”…Maldade pura! Engolindo em seco, Fernando postou, pra ela perceber que ele era tiete de Rosa:

– Aconselho a leitura de A terceira margem do rio, insuperável, A hora e a vez de Augusto Matraga e Sarapalha. Você vai gostar, embora sejam contos rsrs.

Ela agradeceu e se despediu. Ele mandou seu conto mais recente, pra ela não ter o trabalho de ir no Jurassic Park.

Não houve retorno. Três dias depois, ele voltou à carga:

– Leu o conto? Gostou?

Ela respondeu, ríspida, ele podia sentir o gelo do outro lado da linha.

– Fê, estou com obra em casa e lendo Guimaraes Rosa. Já disse a você que estou noutra vibe. Não dá pra ler junto.

– Sei disso, Li, mas a esperança é a última que morre rsss.

Ela não riu, não se despediu, não mandou emojis de beijinhos e mãozinhas dando adeus, nada. Simplesmente escafedeu-se.

Quatro dias depois, sua ansiedade velha de guerra o fez teclar:

– Boa tarde, Lia. Espero que você já esteja numa vibe fernandesca e tenha lido meu conto.

– Pare de me pressionar, ou vou deletar você!

A nuvem negra voltou com tudo, repleta de inveja, despeito, ressentimento – e um conteúdo novo, rancor. Fernando encheu-se de cólera, que nem o protagonista de Sarapalha, que está morrendo de malária junto ao primo, também nas últimas, mas o expulsa quando este confessa que amou por muitos anos, em silêncio, a sua mulher; pensou por muito tempo até tomar uma decisão irreversível, como o protagonista de A terceira margem do rio; oleou o revólver, colocou munição nova e preparou-se para o confronto final, que nem Augusto Matraga. Para coroar, fez um jogo de palavras dos mais infames:

– Lia lia meus contos, não vai ler mais ninguém!

Entrou no automóvel, dirigiu até a cidade de Lia (umas duas horas de estrada), parou perto da residência dela, esperou que saísse na rua e a abateu com três tiros no peito. Depois, colocou o cano do revólver na boca e disparou.

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