Gustavo Calazans
Acordei um dia desses pensando se só a casa da gente pode ser considerada nosso lar. Sigo enlevado pela busca incessante de entender o que possa de verdade caracterizar esse espaço que, de tão cheio de significados e possibilidades, seja tão intangível ao universo das palavras. Pode-se falar num misto de nutrição e troca; de recolhimento e receptividade. E tantos outros conceitos bastante amplos que tentem, minimamente, nos contar um pouco do que nos faz dizer que nos sentimos em casa num dado momento, num certo lugar. A expressão “sentir-se em casa”, para mim, é bem boa como fio condutor para destrinchar essa pergunta.
Quando digo que me sinto em casa na casa de alguém, talvez esteja dizendo que há algo naquele espaço que me aconchega e me recebe de tal forma que, ali, reconheço as qualidades do que para mim seja um lar. Isso me conta também que provavelmente existam qualidades outras, para além daquelas que meu próprio lar apresenta, que me fazem igualmente acolhido. Um senso de enorme liberdade me invade ao pensar nessa possibilidade. Como se houvessem muitas outras estradas a serem trilhadas, não apenas aquela que escolhi. Mais do que isso, me leva a refletir que, por ser a existência um caminho em constante construção, mudanças de rota possam ser mais motivo de felicidade do que de amedrontamento.
Tenho uma amiga querida, cuja casa eu visitava com bastante frequência, que por muitos anos era a pessoa que eu considerava a mais bem recebida por si mesma em seu próprio espaço – naquele conceito de sermos nossos melhores anfitriões tratado faz algumas semanas. Presenciar a cerimônia dela ao acordar, preparando seu café e começando suas atividades matinais, era uma experiência ímpar. Ao visitá-la pela manhã em sua casa, provavelmente ela estaria com uma xícara colorida nas mãos, algumas torradas na torradeira antiga, outras já mastigadas sobre uma delicada louça florida, o computador já operante e milhões de papéis abertos sobre a mesa. E ainda encontraria os vestígios de um aperitivo da noite anterior, já que ela teria recebido um ou dois amigos para jantar. Mas não era uma cena de desleixo, muito pelo contrário. Tudo estava em vias de ser arrumado, filme plástico já passado nas vasilhas de castanhas, parte da louça suja já colocada na máquina e o que restou esperando o próximo embarque. Ali cada tarefa se encontrava num determinado ponto, mas todas estavam encadeadas num processo em condução. Eu testemunhava, nessas visitas, uma casa viva na qual a vida da Andrea se entrelaçava numa linda comunhão. Ela se mudou da cidade há alguns anos e nos vemos menos, mas quando ela volta, a hospedo em minha casa. Por hora e para a minha felicidade, as cerimônias do café acontecem na minha mesa de jantar – e uma deliciosa desordem se instaura por ali. Sendo ordeiro como sou, essa influência, quando superada a angústia, é libertadora. Descobri, a partir dessa experiência, uma nova forma de ser e estar no meu canto.
Assim como a casa da Andrea e a relação dela com esse espaço inspiraram transformações no meu lar, propondo jeitos mais livres de conexão, me ponho novamente curioso com um aprofundamento da minha pergunta original: poderiam espaços coletivos serem (ou representarem) um lar? Por que se experimentar viver de forma diversa aos meus padrões automáticos com alguém que me é caro tem esse poder, suponho que a vivência disso em comunidade tenha um potencial multiplicador ainda maior.
Infelizmente nossas cidades não são ricas em espaços públicos de qualidade. Poucos conseguem propor usos e experimentações que sejam capazes de renovar comportamentos viciados, estigmatizados e normativos. Ainda bem que existem exceções. Tive o prazer de conhecer na semana passada o novo SESC 24 de Maio, no centro da cidade de São Paulo, e ali tive a certeza de que nosso lar não se restringe somente aos limites de nossas casas. Vi umas tantas famílias aproveitando aquele espaço para se espraiarem em diversões aquáticas à luz do pôr do sol enquanto outras tantas passeavam pelas praças suspensas propostas pelo lindo projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Quer fosse admirando a vista, tendo um momento de troca, ou simplesmente lendo um livro, todos estavam ali como se estivessem numa grande sala de estar. Todos juntos e misturados, comungando da sua diversidade em liberdade. E o que tantos poderiam chamar de caos da zona central de uma grande metrópole desabrocha em puro deleite coletivo.
A desordem da vida faz parte do que chamamos lar. Quer seja em nossa casa, na casa dos nossos amigos, ou nos espaços que ocupamos na cidade, enxergar o processo da existência das pessoas refletido nos ambientes é parte fundamental da compreensão de como podemos ser agentes ativos das transformações que queremos ver acontecer. Expandindo territórios e entendendo que nosso lar pode ser todo espaço onde experimentamos a vida.