João Luiz Sampaio
Se é para voltar no tempo, então que seja ao começo de tudo. “Minha relação com a música nasceu ainda no ventre. Minha mãe é uma cantora maravilhosa e sempre cantou em casa”, lembra a maestrina Ligia Amadio. “Desde bebê, eu a acompanhava em ensaios de coro. Aos 5, pedi para estudar piano.”
A música parecia então um caminho natural. Mas, na hora do vestibular, o curso escolhido foi engenharia. “Só que entrei para o Coral da USP. Ali, reconheci minha verdadeira vocação e dediquei-me, de corpo e alma, ao aprofundamento da minha formação musical.”
Ligia começou neste domingo, 12, como diretora artística e regente titular da Orquestra Filarmônica de Montevidéu. Se a relação artística entre o Brasil e seus vizinhos costuma ficar aquém do que se poderia imaginar, a trajetória da maestrina tem sido uma exceção à regra. Ela já foi diretora da orquestra de Mendoza, na Argentina, e da Filarmônica de Bogotá, na Colômbia.
“Em Montevidéu, a presença de artistas brasileiros sempre foi marcante. Talvez o mundo musical brasileiro seja mais hermético aos latinos do que a via contrária”, ela diz, e completa, evitando generalizações na comparação entre cenários: “Cada país da América Latina produz os próprios paradigmas. E, mesmo dentro do Brasil, há imensas diferenças entre orquestras”, afirma – e isso vale tanto para a qualidade técnica como para a comunicação com o público.
Comunicação que parece ser um dos epicentros de suas propostas para a filarmônica, grupo ligado à municipalidade. Sua estreia, hoje, por exemplo, é com um concerto ao ar livre, parte do que ela chama de uma “política de descentralização”, que tem como objetivo a “democratização do acesso à música sinfônica e o fomento de novos públicos”. É esse, ela entende, um dos papéis de um regente. “Nosso poder de comunicação deveria ser valorizado e explorado no sentido de tornar a música orquestral mais acessível e mais próxima do público.”
Os planos são muitos: trabalhar na sonoridade da orquestra, recuperar e gravar compositores uruguaios, repensar o repertório do conjunto (neste ano, por exemplo, a ênfase será em autores do final do século 19 e início do século 20). Mas não só. A essa altura de sua carreira, Ligia acostumou-se, em um mundo ainda dominado pela figura masculina, com a manchete “A primeira mulher a…”. Ela é verdadeira também nesse caso: é a primeira maestrina a assumir a filarmônica, como foi a primeira a reger a Osesp e a ocupar tantos cargos, no Brasil e fora dele. Mas, desde o ano passado, ela resolveu pensar a questão de outra forma. Ao lado das maestrinas Erika Hindrikson e Vania Pajares, criou o projeto Mulheres Regentes, que estabeleceu uma rede que, só em 2016, realizou 30 concertos em todo o Brasil.
Em outubro, em São Paulo, foi realizado ainda o 1º Simpósio Mulheres Regentes, com a presença de artistas e pensadores do Brasil, América Latina, Europa e EUA. “Gerou-se um sentimento de solidariedade e de esperança para aquelas que solitariamente transitam nesse árduo caminho de exercer ou tentar estabelecer-se em uma profissão praticamente proibida para mulheres. Foi somente um primeiro passo, mas chamou a atenção para as dificuldades e limitações que enfrentam as profissionais ” O segundo simpósio deve ser realizado este ano, agora em Montevidéu. E três maestrinas foram convidadas para a temporada da filarmônica. “É preciso promover a igualdade de gêneros”, ela diz. Ligia pode ter sido, em muitos casos, a primeira. Não pretende ser a última.