Marlene de Araújo, 55 anos, baiana, mãe de três homens, avó de duas meninas e um menino, integrante da equipe de varrição do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) há 11 anos. Este é o perfil de Dona Marlene, como é carinhosamente chamada pelos colegas de trabalho.
Chegou a Brasília em 1988. Veio acompanhada pelo então companheiro. Foi empregada doméstica, trabalhou no comércio e depois conquistou a carteira assinada no SLU. Moradora do Recanto das Emas, ela viveu uma história que se confunde com a de milhares de outras mulheres brasileiras.
Na infância, os pais proibiram sua ida à escola. Na juventude, encontrou um companheiro que a agredia física e moralmente. Enfrentou todas essas dificuldades e, no trabalho, encontrou o caminho para resgatar sua qualidade de vida.
Como foi sua infância? A senhora considera que foi reprimida por seus pais por ser mulher?
A criação nossa foi do jeito que minha mãe falava e era bem assim: “Se você casar, você tem que aguentar o marido! Pode ser o que for. Você tem que aguentar”. Acho que muitas mulheres, no Brasil todo, sofrem demais por causa dos pais. Comigo era assim: “Se o marido bater e tudo mais, mas você casou com ele, então, tem que aguentar”. Por isto, a gente tinha que engolir. Hoje em dia, as mulheres aguentam porque querem. Se quiser mesmo, de verdade, homem nenhum no mundo pode segurar. Não tenho vergonha de falar. Minha vida já foi muito sofrida. Já tomei remédio para não morrer de tanto sofrimento que passei com meu marido. Hoje, graças a Deus, não quero morrer de jeito nenhum, minha filha! Quero morrer de amor…de alegria!
Então, a senhora foi criada para ficar casada mesmo sendo agredida?
Fiquei 25 anos casada e sofrendo agressões. Eu acho que sentia obrigação de continuar casada com ele. Era um medo que eu tinha das conversas de minha mãe e meu pai. Tinha vergonha.
E os estudos? A senhora frequentou a escola na infância?
Eu era do interior da Bahia. Meu pai não deixava a gente estudar de jeito nenhum. “Pra que filha mulher estudar? Vai estudar pra escrever carta pra macho?”. “A caneta delas é a enxada”. Essas eram as frases dele. O tempo todo dizia isso para nós. Quando a professora ia até nossa casa para dar aula, papai logo botava a gente para ir dormir, eu e minhas duas irmãs. Mesmo sem sono, ele mandava e a gente tinha que obedecer. Eu ainda aprendi um pouquinho porque tinha uma cunhada da minha irmã que era professora e me dava aula às escondidas de vez em quando. Bem mais tarde foi que meu pai viu o que eu estava fazendo. Então, meus irmãos foram estudar. As mulheres foram para a escola já moças grandes.
E depois, quando saiu da casa dos pais, a senhora frequentou a escola?
Só agora tive a oportunidade de voltar os estudos. Tinha tentado várias vezes. Um tempo atrás, entrei numa escola do Recanto [das Emas] para estudar à noite, mas parei de ir. Um dia, meu marido foi me buscar e me xingou. Morri de vergonha e não quis mais voltar. Agora, vou retomar os estudos aqui na empresa mesmo. Eles têm um programa de educação para adultos.
Por que seu marido a agredia?
Ele começou a beber, usar drogas e eu só sofrendo, sempre fazendo serviço para um e para outro, nas casas de família. Foi aparecendo menino e meu sonho era ter um filho. Ai, tive o meu filho mais velho. Depois veio mais outro filho e veio mais outro – e eu sofrendo as agressões dele. Quando fui trabalhar, as coisas em casa pioraram. Todo dia era um nome mais feio. Me xingava mesmo. Isso aqui [aponta um pouco acima da sobrancelha direita]…Tenho o maior desgosto quando olho no espelho e vejo essa cicatriz. Um dia cheguei do serviço cansada, com febre, por volta do meio-dia, para fazer o almoço para os meninos. Ele estava escondido e bateu o portão na minha cara. Ele gritava que eu estava tendo um caso, que era vagabunda. Foi muito sofrimento.
Quando ele parou de agredir a senhora?
Quando entrei na empresa, há 11 anos, eu disse para ele: “Hoje eu tenho meu salário. Nunca mais você trisca a mão em mim!”. Quem tem filho pequeno que não tem quem [com quem deixar para] olhar, acaba comprando as coisas para dar suporte. Eu comprava televisão nova, DVD, rádio…comprava tudo para os meninos ficarem em casa e não sair. Ele [o marido] vendia tudo para fazer dinheiro para beber pinga e usar drogas. Eu não ia atrás porque ele vendia tudo em boca de fumo, e era perigoso. Então, eu deixava de mão. Saía sempre no prejuízo.
A senhora denunciava as agressões?
Eu já tinha denunciado na delegacia várias vezes. [A polícia o] prendia e soltava. Até que um dia eu dei um basta nisso. Entrei durante uma audiência no Fórum da Samambaia e pedi pelo amor de Deus para o juiz que tirasse ele lá de casa. Passei mal na hora, chorava muito e minha pressão subiu demais. Eu gritava: “Doutor, o senhor tira ele lá de casa hoje! Vou me matar ou mato ele! ” Por um tempo, deu certo.
Como o trabalho a ajudou?
Tenho 55 anos e trabalho sempre com disposição. Amo meu serviço e faço tudo por ele. O trabalho me liberta. Eu não conhecia Brasília. Meu marido não me deixava nem sair de casa. E hoje, por causa do meu emprego, conheço todo o Distrito Federal. Graças a Deus, sou viúva. Quero é arrumar um namorado, um homem que me ajude, que seja companheiro de verdade.
Do que a senhora mais gosta no seu trabalho?
Da paz. Aqui tem paz. Passo oito horas varrendo as ruas. Converso com uma pessoa e com outra. Se estiver com algum problema, você até esquece. É como uma terapia. Trabalho ao lado da Nalva [citando uma colega] desde quando entrei aqui. Não separam a gente. Somos parceiras, amigas, colegas de trabalho. Às vezes, a gente vai para as festas, saímos juntas, contamos as histórias das famílias, dividimos muito as coisas.
Qual conselho a senhora daria a outras mulheres que sofrem violência doméstica?
A primeira coisa que a mulher precisa fazer é criar coragem de trabalhar, ir à luta, enfrentar a vida. As ameaças dos maridos, que prometem matar e bater, têm que deixar de lado, porque hoje em dia as mulheres têm tudo nas mãos para se verem livre de homens desse tipo. Nós, mulheres, hoje temos todo mundo do nosso lado.