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Papai e e o jeitão dele

Limpeza da caixa de gordura vira gota d’água em Ceilândia

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Martinha Oliveira

Sou o caçula lá em casa, apesar de já não ser tão pequeno assim. Estou com quase doze anos ou, como um tio carioca ‘fala’, “douze”. Acho engraçado, pois ele nem percebe que fala assim, tamanha a naturalidade. Por falar nesse meu tio, ele também não sabe ou não quer pronunciar mesmo, mas “mermo”. Prefiro nem corrigir o gajo, ainda mais porque ele é metido a escritor.

Gente, por que estou falando do meu tio? A ideia inicial não era essa. É que quero contar uma coisa que aconteceu há poucos dias, e que levei três dias para me livrar do fedor.

Sabe caixa de gordura? Pois é, de vez em quando, meu pai limpa a daqui de casa, em Ceilândia. Que nojo! Então, sempre que percebo que ele está separando os apetrechos para limpá-la, trato de me esconder. Mas eis que, na semana passada, o meu velho me pegou distraído.

— Gabriel, vem cá me dar uma mão.

— Ah, pai, tô ocupado.

— Ocupado? Tu tá aí de bobeira no sofá, que eu sei.

Sem ter desculpas para inventar, tive que encarar a tarefa de ajudar papai. Mas que ele não viesse com a ideia de querer me fazer meter a mão naquela gordura com cheiro repugnante. Eca!

— O que foi, pai?

— Traga a mangueira até aqui.

Fiz o que meu pai mandou e quis entregá-la. Meu velho me olhou com uma cara de nenhum amigo.

— Gabriel, não tá vendo que tô com as mãos ocupadas?

— Hum…

— Hum o quê?

— Nada.

— Ligue a mangueira e jogue água dentro da caixa de gordura.

Meu pai, que já havia transferido quase toda aquela gosma da caixa de gordura para um balde ao lado, ficou observando a minha lerdeza. Finalmente, liguei a torneira. Não tardou, a água começou a sair forte que nem ducha.

— Gabriel, aponte a mangueira pra caixa de gordura!

— Tô tentando, pai!

— Gabriel, você tá me molhando todo!

Era verdade. Meu pai parecia ter saído de um temporal, pois eu, com o estômago embrulhado por conta daquele cheiro horrível vindo principalmente do balde ao lado, não conseguia direcionar a mangueira de modo certeiro.

— Num vai vomitar em mim, não!

Nunca papai foi tão profético. O vômito saiu como cachoeira sobre os negros cabelos do meu pai. Era possível ver nitidamente dois ou três grãos de milho no cocuruto do meu coroa. Furioso que ficou, papai perdeu qualquer noção de racionalidade. Sabe o que ele fez? Pois acredite, ele fez mesmo! Despejou todo o conteúdo do balde sobre os meus lindos cabelos. Pode uma coisa dessa?

Mamãe, quando viu, quis brigar com meu pai. No entanto, não sei o que deu nela, pois desandou a gargalhar diante do estado de calamidade que ficaram minhas lindas madeixas. Pior foi a minha irmã quando soube. Não perdeu a oportunidade de me apelidar de Gabriel Gordurinha. Ainda bem que o apelido não pegou, se bem que, vez ou outra, meu tio, aquele mesmo que só fala “douze” e “mermo”, me chama assim.

Tive que gastar dois frascos inteiros de xampu e quatro sabonetes para me limpar. Pode parecer engraçado para você, mas juro que, ainda hoje, cada vez mais próximo ao meu aniversário, ainda sinto aquele fedor. Não tenho mágoa do papai por conta do que fez, mas creio que ele pegou pesado demais comigo naquele dia.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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