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Linguagem aberta e franca de Amara Moira em seu intraduzível E Se Eu Fosse Puta

Guilherme Sobota

Antes de assumir a própria identidade, Amara Moira, 31, pensava a literatura como um laboratório de experimentação de linguagem – ela estuda o “intraduzível” em James Joyce, em um doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Mas desde que pediu para uma pessoa chamá-la pelo seu nome pela primeira vez, há dois anos, ela acredita que a mesma literatura deve ser um instrumento de transformação social.

É o que ela procura com E Se Eu Fosse Puta, livro de memórias e espaço de reflexão publicado agora pela Hoo Editora. O livro traz textos retrabalhados de um blog seu de mesmo nome, criado com o objetivo de tentar entender o processo pelo qual estava passando – assumir a identidade de travesti, e, depois, se tornar prostituta e escritora.

“Demorei para me assumir, em parte por conta do medo de ter que me prostituir da forma mais violenta possível, com condições de trabalho complicadas”, explica, simpática, ao Estado, no apartamento onde vive na zona sul de São Paulo. “Quando comecei minha transição, começaram a me tratar como prostituta, é só dessa forma que as pessoas conseguem imaginar uma travesti.” Ela começou então a frequentar e se aproximar da comunidade das travestis e a entender que a prostituição poderia, também, ser uma escolha. “Escrever sobre isso foi tentar entender esse processo.” Agora, ela quer que seu relato seja um instrumento que ajude as pessoas a pensar sobre o que é a prostituição.

No livro – que tem tirinhas da cartunista Laerte e textos de colegas -, ela alterna relatos dos programas, especulações sobre as motivações e atitudes dos clientes, reflexões sobre sua militância no movimento LGBT e como essas atividades consolidam mudanças no seu próprio jeito de encarar a vida.

“Fico pensando que esse livro poderia ter alguma função positiva, fazer com que a sociedade veja a travesti e a prostituta por olhos que a humanizem”, diz, esperançosa. “Isso já seria um ganho estupendo.”

Uma das conclusões mais agudas a que ela chega é a de que “a nudez final, nudez nudez, essa está reservada só para profissional de fato, só para quem saiba despir”. Porque, como ela explica, a sociedade cria os homens com muitas limitações e máscaras – em relação ao gênero e ao sexo – e aqueles que a procuram, na rua, podem por alguns segundos, ao menos, botar essa máscara fora. “A questão é que, passado o momento do gozo, eles voltam. Já não lidam bem nem com o fato de ter tirado essa máscara por um tempo.” Ao dizer que quer trazer os clientes para a discussão, ela reivindica um lugar com propriedade: “Se a gente quer saber quem são os homens, as prostitutas devem ser as primeiras a ser questionadas”.

Alguns de seus relatos dão conta de episódios de violência por parte dos clientes – como o homem que a forçou a fazer sexo oral nele sem preservativo – e as intermináveis e incômodas negociações do preço dos programas, que ficam entre R$ 10 e R$ 50, com algumas exceções. “O ‘não é não’ das feministas precisa urgentemente ganhar a zona, empoderar prostitutas. Aqui, ainda não ouviram nada a respeito disso”, garante.

“Travestis são mortas enquanto estão trabalhando. Tornar esses espaços mais seguros é também garantir vidas”, explica. Ela cita dados da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) de que aproximadamente 90% das travestis trabalham com prostituição. “Buscamos condições mais seguras e, ao mesmo tempo, que nos vejam para além de um corpo que está vendendo sexo”, diz ainda.

Sua transição – o fato de assumir a identidade de mulher em um corpo que nasceu com a condição física masculina – ocorreu durante o seu doutorado, momento em que atingiu independência financeira. “Brinco que meu projeto era inútil e a universidade adora disso”, compara. “A universidade não gosta de coisas comprometidas com seu tempo, com transformação social. Isso me incomoda horrores. Como eu vou fazer com que as travestis apanhem menos da polícia e sejam menos excluídas da sociedade estudando a vírgula da página 58, da obra xyz? Não estou falando que Letras é inútil, mas, às vezes, o estudo se presta apenas à bolha criada ali dentro”, lamenta.

Ela vai, contudo, tocar o projeto de doutorado até o fim, motivada por uma provocação de outra professora: “Quero trazer Joyce de volta para a zona de legibilidade”. Ela também ressalta a importância de possuir o título para, por exemplo, poder aceitar o convite de um professor da Faculdade de Direito da USP para compor uma banca de avaliação. A qualificação deve ocorrer em outubro e a defesa está marcada para fevereiro. “Quero cair no vestibular, um dia”, brinca – mas nem tanto.

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