Apesar de ter sido criado desde as primeiras horas de nascido na capital, lembro-me de um tempo que papai me pegava para rodarmos pelo interior. Não sei se ele fazia isso para me mostrar como é que parte da gente deste país vive ou, então, era apenas para me fazer crer que o leite, a carne, as hortaliças, as frutas e tudo mais que comemos saíam daquele lugar tão distante do asfalto carregado de fumaça e buzinas.
Certa feita, meu pai cismou em desbravar o cerrado, que, naquele tempo, estava praticamente intacto, caso não fossem pelas estradas de terra e algumas cercas que dividiam as propriedades. Mamãe nem se atreveu a arrumar as malas, pois sempre foi afeita às benesses que a vida urbana pode proporcionar. Por conta disso, meus dois irmãos mais novos, que mal tinham largado as fraldas, também ficaram naquela vida de apartamento.
Não sei ao certo quantos quilômetros rodamos até pararmos em um hotel de beira de estrada. Estava frio e papai me cobriu com seu casaco. Não sei por que, mas me senti um homem usando as vestes de um adulto. Na manhã seguinte, tomamos café e prosseguimos viagem aparentemente sem rumo. Coisas do meu velho, que sempre teve espírito aventureiro. Se tivesse nascido na época das grandes navegações, certamente estaria a bordo de uma nau desbravando os sete mares.
Foi já no final de tarde que papai estacionou o Jeep Willys diante da porteira da fazenda do Ivan, amigo de longa data do meu pai. Eles se conheceram ainda rapazes, quando trabalhavam em um cartório no centro. Ivan, depois de mexer naquele amontoado de documentações, disse que a vida precisava de menos papel e mais mato. E foi assim que partiu para a roça em meados de 1969, logo após Neil Armstrong dar os primeiros passos sobre a superfície lunar.
Fomos recebidos pelo sorriso largo do amigo do meu pai. Eu, que naquela época achava meu coroa o cara mais alto e forte do mundo, fiquei impressionado com o tamanho do Ivan. Ele devia ter dois metros, enquanto descobri, anos mais tarde, que papai mal chegava a um metro e setenta.
Na manhã seguinte, acordei bem cedo e fui dar uma volta na propriedade. Havia de tudo que um garoto de oito anos poderia desejar. Cavalos, porcos, vacas, galinhas, um lago cheio de peixes, patos e até algumas tartarugas, árvores para escalar, um mundo a ser explorado, tamanha a imaginação que eu herdara do meu pai. Como desejei que mamãe e meus irmãos estivessem ali para sentir que a vida vai muito além do tapete da nossa sala e do parquinho no final da rua.
Após passarmos uma semana inteirinha naquele paraíso, chegou a hora da despedida. Promessas de novas visitas, apesar de ditas com sinceridade naquele tempo, jamais se concretizaram. Nunca mais voltei a ver o Ivan, que talvez nem tivesse mesmo dois metros de altura.
No caminho de volta, paramos em uma vendinha, cujo dono, ainda recordo, se chamava Valdir. Papai apontou para uma lata de salsicha empoeirada sobre a prateleira de madeira. O comerciante a pegou e a esfregou na camisa, como se aquele gesto simplório fosse desinfetá-la. Enquanto eu o observava, o homem pegou o abridor e nos serviu. Até hoje, eu me recordo do gosto daquela iguaria no meio do cerrado. Que saudade!
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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