Todo jovem gosta de se julgar original. Dono das próprias ideias, inventor do próprio caminho. Mas a maturidade chega, invariavelmente, propondo um acerto de contas. O que antes parecia tão pessoal, tão único, logo se mostra herança dos que vieram antes de nós. E nem importa muito se aceitamos ou rejeitamos esse legado, se queremos ou não queremos ser como nossos pais. Existe uma espécie de armadilha inescapável nesse passado que nos precede. O espetáculo “Love, Love, Love”, em cartaz no Teatro Vivo, mostra a relação de um casal ao longo de 40 anos e seu impacto sobre a trajetória de seus descendentes.
A ação se passa em 1967 – quando os universitários Sandra e Kenneth se conhecem. Pula para os anos 1990, quando os outrora hippies trocaram os sonhos de amor livre pelos papéis de mãe e pai de uma disfuncional família burguesa. Termina em 2014, com os filhos cobrando os pais por seus fracassos e incapacidades na vida adulta. Essa é segunda vez que o Grupo 3 de Teatro – formado pelas atrizes Débora Falabella e Yara de Novas e pelo iluminador Gabriel Fontes Paiva -, investe em um texto de Mike Bartlett (também conhecido pela série da BBC, “Doctor Foster”). Em 2013, a companhia de Minas Gerais montou “Contrações”, peça com ares de teatro do absurdo em que uma funcionária tinha sua rotina invadida pela empresa na qual trabalhava.
Aos 37 anos, Bartlett é um dos mais interessantes nomes da safra de novos autores britânicos, já consagrado pela crítica e pelas poderosas instituições teatrais de seu país. Preocupado em fazer um teatro menos voltado a inovações formais e mais interessado em temas de interesse público, o dramaturgo costuma navegar tanto pelo épico quanto pelo drama em suas obras. “Há sempre política, economia e questões sociais no que escrevo. Porque não fazer isso seria se dedicar a uma arte para privilegiados. As únicas pessoas que não se preocupam com economia, política e a sociedade são as que têm dinheiro suficiente para não ter que pensar nisso”, disse em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em sua primeira visita, em 2011.
Ainda que o propósito do amplo debate se mantenha firme, “Love, Love, Love” mira situações de cunho privado: a relação dos membros de uma família através do tempo. É interessante como o escritor encara os desatinos e acertos de uma geração não apenas no discurso proferido em público. Vai desvelando aqui e ali como nossos comportamentos dentro de casa e, especialmente, nas relações de afeto que construímos carregam também um componente político que nos escapa. O que a libertária geração dos anos 1960 fez dos seus sonhos? Que mundo legaram a seus filhos? “Vocês não mudaram o mundo. Vocês o compraram”, acusa Rose, a filha inconformada com o egoísmo dos pais, vivida por Débora Falabella.
Mike Bartlett está a examinar como a sua própria geração – a dos filhos dos hippies – se relaciona com um passado que não chegou a conhecer. Mas que se faz presente. Em uma primeira análise, o texto pode soar rigoroso demais com os Baby Boomers. Não parece justo, afinal, cobrá-los por todo o mal-estar atual. Os que nasceram depois da 2ª. Guerra, encamparam uma revolução sexual e de costumes, se opuseram à violência no Vietnã e foram às ruas protestar por aquilo em que acreditavam. Deram a sua contribuição. Será que foi suficiente? O texto não toma partido apenas dos filhos malsucedidos. Vai abrindo fendas e questionamentos que colocam em dúvida todos os envolvidos nesse balé geracional.
A encenação consegue demarcar as diferentes épocas da narrativa com mudanças pontuais no cenário e a caracterização proposta pelos figurinos de Fabio Namatame. A direção de Eric Lenate é feliz ao investir mais nas atuações, assegurando um bom ritmo, e deixando um pouco de lado os efeitos de cena. A proposta não é propriamente minimalista ou ascética. Longe disso. Mas tem uma bem-vinda dose de limpeza que contrasta com certo exagero visual característico de seus trabalhos mais recentes.
Depois de estrear no Rio, “Love, Love, Love” chegou a São Paulo com algumas mudanças no elenco. O que talvez explique certo desnível entre as interpretações. Alexandre Cioletti, que faz o papel de Kenneth quando jovem e depois assume o lugar do filho Jamie, ainda parece pouco à vontade e recorre a frágeis caricaturas nos três atos da peça. Em contraposição, Débora Falabella e Yara de Novaes vivem mais um frutífero encontro em cena. Vencedora do Prêmio Shell carioca de melhor atriz 2018, Yara toma todos os olhos e ouvidos dos espectadores quando surge no palco. Sua Sandra é capaz de uma egolatria acachapante, maravilhosamente cínica e debochada. Certamente, umas das melhores atuações dessa temporada