Em 1974, o general-presidente Ernesto Geisel, o quarto ditador brasileiro após o golpe militar de 1964, assumiu a Presidência da República no rabo da crise internacional do petróleo, provocada por uma reação dos países membros da OPEP (Organização dos Países Produtores de Petróleo) à Guerra do Yom-Kippur. Em outubro do ano anterior, Egito e Síria tentaram retomar o Sinai e as Colinas do Golã que haviam sido invadidas por Israel em 1967, mas foram rechaçados por Telavive e com a ajuda dos Estados Unidos voltaram às suas posições.
Na ocasião, a vingança da OPEP foi explodir os preços internacionais do petróleo cobrando das companhias estrangeiras que exploravam e exportavam suas jazidas uma tarifa de 50% sobre o valor do barril, ágio que as petroleiras repassaram aos países consumidores, atingindo toda a economia mundial.
Geisel, que tinha trocado a presidência da Petrobras pelo Palácio do Planalto, conhecia muito bem a dependência brasileira de petróleo, pois a produção interna era muito aquém do consumo o que levava a altas despesas com a importação do produto, agora ainda mais aumentadas com o aumento dos preços.
Além da elevação do preço do petróleo, Geisel tinha pela frente a construção da Usina de Itaipu, em sociedade com o Paraguai e com a oposição da Argentina que alegava a possibilidade de inundação do seu território com um eventual rompimento da barragem. Foi quando o general convocou o embaixador do Brasil em Buenos Aires, Antônio Azeredo da Silveira, para comandar o Ministério das Relações Exteriores.
Enquanto o embaixador Silveirinha ia cuidar de vencer os argumentos da Argentina sobre os riscos de Itaipu, o próprio Geisel estabeleceu o plano de enfrentamento da questão do petróleo e confiou ao seu chanceler a condução da sua política externa baseada no “pragmatismo ecumênico e responsável”, para garantir com segurança o desenvolvimento nacional.
Para ter acesso ao petróleo do qual o Brasil precisava, Geisel buscou aproximação com os árabes, o que fez sem papas na língua. Denunciou o sionismo de Israel, defendeu o direito dos palestinos à sua pátria e com isso angariou a simpatia do mundo árabe estabelecendo relações com Arábia Saudita, Iraque, Líbia e os Emirados Árabes, garantindo o fornecimento de petróleo para as refinarias brasileiras.
O pragmatismo ecumênico do governo que vinha de um golpe militar que teve por justificativa o combate ao comunismo expôs-se em raio-x ao buscar petróleo também na União Soviética, de quem o Brasil passou a comprar três mil barris/dia em troca de produtos agropecuários.
Mas a questão energética não se limitava ao petróleo, e Geisel, luterano de origem alemã, firmou um acordo nuclear com a Alemanha para a instalação no Brasil, com transferência de tecnologia, de reatores atômicos para construção das usinas nucleares de Angra dos Reis.
Os Estamos Unidos, com quem o Brasil tinha alinhamento automático desde de 1947, reagiram imediatamente ao acordo Brasil-Alemanha e passou a denunciar violações de direitos humanos pela ditadura brasileira. Às ameaças do então presidente Jimmy Carter, Geisel respondeu com a surpreendente denúncia do Acordo de Cooperação Militar que unia Brasil e Estados Unidos no campo da defesa desde 1952.
O pragmatismo ecumênico da diplomacia comandada pelo embaixador Azeredo da Silveira não tinha nenhum conteúdo ideológico, não importava se o parceiro do outro lado era uma democracia ou uma ditadura, sistema capitalista ou socialista: interessava apenas que esse relacionamento trouxesse benefícios ao projeto de desenvolvimento nacional do governo.
Tanto que, de olho nos nascentes países africanos, o Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer a vitoriosa Revolução dos Cravos em Portugal, logo depois da posse de Geisel e que levou ao fim da ditadura salazarista que durava mais de três décadas.
Enquanto concedia asilo ao ex-ditador Marcelo Caetano e aos generais portugueses derrotados por seus capitães, o Brasil destacava o embaixador Ítalo Zappa, então chefe do Departamento de África do Itamaraty, para negociar o apoio brasileiro aos guerrilheiros Agostinho Neto, de Angola, e Samora Machel, de Moçambique, que comandavam os movimentos de libertação dos seus países (MPLA, de Angola, e FRELIMO, em Moçambique) após 14 anos de guerra contra o poder colonial português, reconhecidos em primeira mão pelo governo brasileiro.
Da África Zappa partiu para uma missão ainda mais complicada no campo diplomático-ideológico para no dia 15 de agosto de 1974 o Brasil surpreender o mundo – e igualmente todos os reacionários e anticomunistas brasileiros – com o anúncio do rompimento das relações diplomáticas com Taiwan e o estabelecimento de relações diplomáticas, comerciais e culturais com a China.
Naquele dia Brasília e Pequim trocaram embaixadores e abriram suas embaixadas, sendo Zappa o primeiro representante brasileiro junto ao governo chinês. O acerto do estabelecimento das relações entre os dois países foi tão benéfica para a economia brasileira que, 50 anos depois, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, responsável por 30% das nossas exportações, com um comércio bilateral em torno dos US$ 100 bilhões, superando Estados Unidos e Argentina.
A China também é uma das principais fontes de investimento externo no Brasil, com chineses à frente de grandes projetos de infraestrutura e logísticos. A relação entre os dois países se estende a outros campos, como: Apoio à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, uma iniciativa liderada pelo Brasil, Cooperação tecnológica, Diálogo entre os povos e Promoção da governança climática global e da transição energética.
O ecumenismo da diplomacia do governo Geisel prosseguiu com o seu sucessor, o general João Batista Figueiredo, último ditador do golpe de 1964. O alinhamento automático com os Estados Unidos foi superado de tal forma que o Brasil não aderiu ao boicote norte-americano às Olimpíadas de Moscou, em 1980, e compareceu à Rússia com grandes equipes de atletas olímpicos.
Por sua vez, o presidente Lula da Silva iniciou seu governo marcando posição a favor de um mundo mais humano e não excludente, tendo participado igualmente do foro social de Porto Alegre e do foro econômico de Davos, quando diante de públicos fundamentalmente distintos pregou a incorporação da justiça social no desenvolvimento econômico, reconhece o embaixador Celso Amorim, seu chanceler.
Em seu discurso de posse no primeiro mandato Lula defendeu a construção de uma América do Sul “politicamente estável, forte e unida” e chegou a afirmar que o Brasil “não falaria grosso com a Bolívia, nem fino com os Estados Unidos”.
No caso especial da Venezuela pregou que cabia aos venezuelanos “encontrar soluções para os seus problemas”. Ainda no início do seu primeiro governo, Lula promoveu a constituição do Grupo de Amigos do Secretário-geral da OEA para a Venezuela, que durante um ano atuou como facilitador do diálogo entre o governo venezuelano e a oposição e encaminhou o referendo que confirmou a permanência do então presidente Hugo Chaves na chefia do país.
Apesar do agravamento da crise e do aprofundamento da pobreza do país vizinho provocada pelo bloqueio econômico dos Estados Unidos sobre a Venezuela, com o objetivo de derrubar o regime bolivariano fundado por Hugo Chaves para se apossar das reservas venezuelanas de petróleo, o governo Lula 2 continuou apoiando o governo de Caracas, com quem chegou a iniciar a construção de uma refinaria em Pernambuco, para processar petróleo em sociedade da Petrobras com a PDVISA, projeto interrompido devido às dificuldades venezuelanas.
Com a morte de Chaves, substituído por Nicolás Maduro, e o golpe que retirou do poder a presidenta Dilma Roussef, as relações do Brasil com a Venezuela entraram em queda livre no governo de Milton Temer e se estagnaram durante o mandato de Jair Bolsonaro.
De volta ao poder, Lula retomou o diálogo com Maduro, que inclusive esteve em Brasília para a posse do seu terceiro mandato, mas curvando-se às pressões internacionais sobre Caracas apoiadas pela mídia corporativa brasileira (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e as organizações Globo) o presidente cedeu e o Brasil voltou a afastar-se da Venezuela.
Essa pressão da mídia corporativa sobre a política externa do governo Lula 3 foi iniciada nos primeiros dias do novo mandato para fazer contraponto com a diplomacia de Bolsonaro comandada pelo chanceler Ernesto Araújo que conduzia a política externa brasileira sob a ótica e orientação do escritor Olavo de Carvalho, ideólogo da direita brasileira radicado nos Estados Unidos e que ficou conhecido como “guru do bolsonarismo”.
Como o governo começou bem na economia, o objetivo era arranjar um jeito de minar o terceiro mandato no seu nascedouro para evitar que Lula chegasse forte já nas eleições municipais que foram disputadas neste mês de outubro e, portanto, enfraquecido já para a disputa da sua sucessão, em 2026. O avanço da direita no pleito municipal mostra que o plano deu certo.
Apesar de politica externa não se constituir em interesse do povo brasileiro, a mídia corporativa procurou identificar posições ou atos do governo contrários aos seus interesses e buscou o que chamou de “gafes” nas palavras de Lula.
A mais notória delas foi quando Lula comparou o massacre de palestinos por Israel com o holocausto. Ele afirmou que as ações de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza foi algo que só ocorreu na História “quando Hitler resolveu matar os judeus”.
Essa afirmação do presidente levou Israel a declarar Lula persona non grata, mas ao contrário de outros países, como a vizinha Bolívia, o Brasil não rompeu relações com o Estado judeu, limitando-se a retirar o embaixador em Telavive depois que ele foi submetido a um vexame pelo governo local.
A imprensa corporativa também apontou como gafe de Lula o fato de o presidente ter responsabilizado a Ucrânia por ter sido invadida pela Rússia, depois do ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger ter reconhecido o erro da OTAN de avançar suas fronteiras em direção à Rússia.
A cada um desses episódios a mídia corporativa encomendava e divulgava com grande destaque pesquisas de opinião naturalmente feitas junto a uma elite que se interessa por política externa. Antes da pesquisa, o repetido noticiário destacava o assassinato e sequestro de 1.200 israelenses por palestinos em outubro do ano passado, mas escondia os bombardeios israelenses na Faixa de Gaza que mataram 40 mil palestinos, a maioria mulheres e crianças. O Jornal Nacional chegou a chamar de “uma explosão” o bombardeio de um hospital de Gaza por Israel que deixou centenas de mortos.
O caldo de cultura foi a realização das eleições na Venezuela, com a reeleição de Maduro e a contestação do resultado pela oposição, mas sem que nenhuma das partes apresentasse provas de vitória ou de derrota. Lula esqueceu-se de que cabia aos venezuelanos “encontrar soluções para os seus problemas” e passou a portar-se como ventríloquo dos interesses contrários a Caracas.
O governo brasileiro acusa Maduro de “quebra de confiança” do governo venezuelano, por não ter apresentado as atas com os resultados eleitorais, segundo explicou o ex-chanceler Celso Amorim ao jornal O Globo. Amorim não esclareceu, no entanto, se o Brasil também considerou quebra de confiança o fato da oposição a Maduro também não ter apresentado as atas que disse ter.
Esta teria sido a justificativa para o veto do Brasil ao ingresso da Venezuela ao BRICS, que seria formalizada na reunião grupo realizada na semana passada em Kazan, na Rússia. A posição brasileira abre um grave precedente para a sua liderança como maior país da América do Sul e acaba por se associar às sanções econômicas impostas pelo Estados Unidos Unidos e países da Europa à Venezuela, contribuindo para o empobrecimento do país vizinho. E para uma diplomacia que vive condenando vetos do Conselho de Segurança da ONU, a atitude contra a Venezuela soa no mínimo cínica.