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O voto de Fachin

‘Lula deve voltar. Por quê? Ora, por tudo…’

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Emiliano José*

Quando saiu a histórica decisão do ministro Edson Fachin, um amigo me telefonou acreditando erroneamente pudesse aconselhar Lula da necessidade de falar pouco e propor uma aliança a mais ampla possível. Disse de pronto da minha impossibilidade de influenciar a fala do presidente Lula. E acrescentei: ele sabe o que dizer à Nação brasileira. Tem consciência histórica e um compromisso profundo com o povo. Ao assisti-lo, dia 10 de março de 2021, tive a certeza de que estava certo.

De passagem, esclareço a expressão histórica decisão do ministro Edson Fachin. Não é segredo para ninguém a posição dele. Tem se manifestado seguidamente a favor da Operação Lava Jato, estafeta dela como disse um jornalista amigo. E, de repente, surpreende todo mundo, fala-se até a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), e toma a decisão de anular toda a parafernália processual da República de Curitiba relativamente ao presidente Lula. O fato: foi uma decisão histórica.

É antiga lição: os homens, ao agirem, não dominam todas as consequências de suas decisões. Talvez Fachin imaginasse não pudesse o STF dar sequência à suspeição do antes todo-poderoso juiz – teria perdido o objeto. Não perdera, entenderam os ministros do STF encarregados de julgar o habeas-corpus impetrado pela defesa do Lula desde 2016, se me recordo bem. Após o resultado das últimas horas acerca da suspeição, derrotada a pretensão de perda do objeto, com o empate de 2 a 2 até agora e o pedido de vista do ministro Kassio Nunes, o resultado final é jogado pra frente. A decisão de Fachin é histórica, volte-se a ela, porque recoloca Lula na cena política de 2022, com vigor provavelmente jamais suspeitado pelo ministro.

Talvez Fachin não dominasse, e muita gente não domina, gente também de boa escolaridade, a força vulcânica de Lula. Força plantada na alma brasileira, no coração de milhões. Bastou a decisão, e acendeu-se uma forte esperança a se espalhar como rastilho de pólvora pelo país, num momento de tanto desalento, tanta morte, tanta fome, tanto desamparo, tanto desgoverno.

Porque, também, na sequência, não se pode desconhecer o significado histórico dos magistrais votos de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski no julgamento da suspeição do ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Lula lavou a alma: tudo o que dissera ao longo desses anos estava ali, no verbo douto e inflamado dos dois ministros. Sei, há gente no STF afirmando de antemão derrota da decisão de Fachin no plenário, como o ministro Marco Aurélio. A ver.

Toda essa movimentação do Judiciário deve-se a uma intensa, ampla, persistente luta política, social, cultural em torno da liberdade de Lula, cuja repercussão chegou à grande parte do mundo. É importante não desconhecer isso. A Vigília Lula Livre é expressão histórica e comovente de tal luta. Para além da análise desse ou daquele ator singular, e ela não deve ser desprezada, o Judiciário se movimentou em decorrência da pressão da sociedade.

Fachin talvez até imaginasse, ou imagine ainda, um novo julgamento relativo a Lula. Não pensou no incêndio. A esperança se espalhando. Constrangendo quem queira fazer andar novamente qualquer encenação contra um homem inocente. Por isso, decisão histórica independentemente das pretensões do ministro, manifestas ou implícitas. O problema é que o jogo não fora combinado com o russo – e o russo, aqui, para tomarmos a metáfora de Garrincha, é Lula, não o Moro. A conjuntura, por ser Lula quem é, sofreu uma reviravolta inimaginável, com a cena sendo inteiramente ocupada por ele, uma espécie de tsunami alcançando todo o país, e com repercussões em todo o mundo.

A conjuntura de complexa tornou-se extremamente complexa. Lula, a quem a Lava Jato pretendia manter amordaçado pelo espectro das condenações, subverteu todas as expectativas predominantes até agora, à esquerda, ao centro e à extrema-direita, depois da decisão de Fachin. Voltou a toda carga, revigorado, cheio de entusiasmo, disposto a infundir esperança num país marcado pela pandemia e pela política genocida do atual presidente, pela dor dos mais de 273 mil mortos pela Covid-19, pela estupefação diante da quase inexistência de vacinas.

O discurso desse 10 de março está inscrito nessa conjuntura. É como se os deuses enviassem um homem para intervir num país sob um impasse profundo, um deus ex machina. Devesse ele surgir no meio da escuridão, iluminando tudo. E como são caprichosos os deuses, a decisão de Fachin se deu no Dia Internacional da Mulher. Vamos arrebentar os grilhões desse homem acorrentado nesse dia, e ele lembrará da mãe, de dona Lindu, a quem ele reverencia com tanto carinho, quase devoção, como se a cada momento ele a ouvisse repetir insistentemente “não se curve, não se curve”, e ele seguindo o conselho jamais se curvou. Isso lhe dará mais forças ainda, pensaram os deuses. Chegou com essa benção.

Conversei com o senador Jaques Wagner e ele além de me lembrar da sugestiva coincidência de a decisão surgir no Dia Internacional da Mulher, deu uma definição precisa sobre o pronunciamento: sereno, maduro, futurista. Como se Lula tivesse superado uma etapa, provado sua inocência, defendida por ele com obstinação, e agora, asas para voar: trata-se de cuidar do Brasil, de seu povo.

Pensar no duro presente do país, no seu futuro, 2022 é amanhã. O fato em si, a decisão de Fachin, por suas consequências, é maior do que o memorável discurso, considera Wagner, para quem a chegada dele ao jogo sucessório deixa os adversários todos de barba de molho, atordoados. E claro, dá esperanças ao povo.

Não, não foi discurso de quem quer apagar o sofrimento, no entanto. Nele, Lula, parece presente o pensamento de Leon Bloy: sofrer, passa; mas ter sofrido não passa jamais. As chibatadas no lombo nunca serão esquecidas. E por isso, ele nunca ignora as dores do povo brasileiro – porque as experimentou ao longo da vida, e sofreu perseguições da Lava Jato e de todo o sistema de Justiça por longos anos, atingindo a ele e aos seus familiares de modo cruel, perverso – a mulher, o neto, o irmão, filhos, todos a quem pudessem atingir foram alcançados pelos torcionários da República de Curitiba.

Como se dissesse: não vou carregar ódio no coração, mas também não vou esquecer minhas dores. E se o sofrimento dele é enorme, se o sangue das chibatadas ainda escorre, o do povo brasileiro é muito maior, submetido ao desgoverno atual, atormentado pela fome, desemprego, pandemia, abandono, e ele ressaltou tudo isso logo ao início de sua fala.

No discurso, pensa a Nação e seu povo. O Brasil inserido na lógica do mundo. De quem o quer soberano, falando de igual para igual com todos os países, sem qualquer subserviência. Insistiu no fortalecimento das relações com os países latino-americanos, teve a coragem de elogiar o Foro de São Paulo, e defender a relação com os países africanos. Não teve receio de defender Venezuela e Cuba, na linha da autodeterminação dos povos. Chegou a agradecer a Maduro e a Díaz-Canel pela solidariedade no tempo de prisão e pela comemoração de sua libertação.

Prioridade ao combate à pandemia e à campanha nacional de vacinação, criticando duramente e pautando o atual governo, constrangido a se apressar no mesmo dia para anunciar medidas cosméticas na linha do pensamento de Lula de horas antes. Na pandemia, face à tragédia, Lula conclama a uma unidade ampla, destaque para a ação dos governadores. A longa denúncia sobre o genocídio, sobre o descontrole com a pandemia, sobre o negacionismo do atual presidente foi o assunto de maior repercussão de sua fala no exterior.

Firme contra a privatização. Em defesa da Petrobras. Evidencia a natureza destrutiva da Lava Jato na economia, desestruturação das empresas de infraestrutura, o desemprego provocado, o crime contra o país, a insignificância do recuperado face aos prejuízos efetivos causados, além da tentativa de corrupção com um fundo mal explicado.

Defende a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa, a diversidade, fala contra o racismo, contra as chamadas balas perdidas, contra a lgbtfobia.

Verdadeiro com os militares. Seu governo os fortaleceu, como lembrou. Aproveitou para criticar o atual presidente e sua obsessão a favor de armas. O povo brasileiro não está precisando de armas. Precisa de emprego, de salários, de livros, educação – disse Lula. Foi duro com a atitude obviamente golpista do general Vilas Boas Correa.

Sabia: não podia dizer-se candidato. Sendo, inegavelmente. Colocando-se fortemente como candidato. Situando-se como um claro contraponto a um governo incompetente e genocida. Contraponto a que a própria mídia conservadora admitiu, a contragosto. O centro, bem perdido. Paga o preço de ter apoiado Bolsonaro.

Lula tem consciência de seu papel de ponto de união da esquerda brasileira. Essa união talvez seja o primeiro passo com vistas a 2022. Ele estará à frente disso, como demonstrou nesse dia 10. Deu recados sobre a prioridade da unidade das forças de esquerda e daquelas verdadeiramente democráticas. Depois, dará passos na atração de outras forças, quem sabe num segundo turno ou ainda num primeiro – a conjuntura dirá.

Radical, sim. De ir às raízes. Disse isso. Mas, liderança com vocação para unir o Brasil. Mandou esse recado. Quer conversar com todos. Se a inegável prioridade é a classe trabalhadora, a desigualdade profunda a assolar o país, e até por isso, não pode excluir ninguém. Conversar com os empresários. Mostrar-lhes: sem distribuição de renda não há mercado.

Conversar com os militares, demonstrar, se preciso, a importância do papel deles, na defesa da Nação. Recupera, com seu discurso, a prioridade da política. Deixou claro isso quando falou da composição do Congresso. Gostaria que fosse outro. Não é. Soberania popular: quem escolhe é o povo. E, por isso, disse, é preciso dialogar com as casas legislativas, sem excluir ninguém – é a arte da política, explicada por um mestre. Sabe: diálogo é parte essencial, inafastável da política.

Talvez ao falar no Sindicato de São Bernardo do Campo ele se lembrasse de outra memorável fala, no mesmo sindicato, do dia 7 de abril de 2018, antes de seguir preso para Curitiba, por sentença do juiz Sérgio Moro, hoje desmascarado, embora insuficientemente. A marca permanente, perene, nas falas do presidente Lula, é seu compromisso com o povo brasileiro. Nisso, não varia. Nisso, coerência. Mudar, pode, e deve. Nisso, nem pensar.

Olhar primeiro para sua gente. Conhece do sofrimento da gente pobre, sabe dela por experiência vivida. É homem de alianças, será sempre. Não houve no mundo nenhuma transformação bem-sucedida sem alianças, e elas são feitas com diferentes. Mas, sabe quem são seus amigos. A composição da coletiva no Sindicato dos Metalúrgicos, uma evidência disso. Talvez não custe recuperar parte de sua fala, no mesmo sindicato naquele também memorável dia 7 de abril de 2018, triste e épico:

Eu sei quem são meus amigos eternos e quem são os eventuais. Os de gravatinha, que iam atrás de mim, agora desapareceram. E quem está comigo são aqueles companheiros que eram meus amigos antes de eu ser presidente da República. É aquele que comia rabada no Zelão, que comia frango com polenta no Demarchi, é aquele que tomava caldo de mocotó no Zelão, esses continuam sendo nossos amigos. São os que têm coragem de invadir terreno para fazer casa, são aqueles que têm coragem de fazer uma greve contra a Previdência, são aqueles que ocupam no campo pra fazer uma fazenda produtiva, são aqueles que na verdade precisam do Estado.

Não se domina, porque impossível, todos os desdobramentos dessa conjuntura, marcada neste momento pelo tsunami Edson Fachin, pelos terremotos Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski, e pelo ressurgimento revigorado de Lula, disposto a liderar uma caminhada para permitir ao Brasil sair da tragédia sanitária e política atual.

Sabe-se, sim: é uma nova conjuntura. Absolutamente nova. Tirar Lula da cena novamente parece bastante complicado. O país abraçou o seu líder com força. No meio da pandemia, está nos braços de seu povo, animado pelo sopro de esperança trazido por ele. Vão querer arrancá-lo de lá, do território da esperança, à força? Outra vez? Não creio. Ainda assim, “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Resta fazer crescer a esperança, alimentar mais e mais as forças do povo, para evitar que se assanhem. Só assim as bruxas se assustam.

*Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha

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